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Alteração provisória do 1º artigo da Lei Escoteira e sobre o “escotismo tradicional”.

Muitos adultos acreditam que o Escotismo mundial foi fundado no Brasil e que a ilha de Brownsea fica em Santa Catarina. Ou, no mínimo, que o caráter “tradicional” dos escoteiros é íntimo daquilo que viveram em suas próprias infâncias e, ao mesmo tempo, apontando que a juventude atual é incapaz de vivenciar o escotismo como quando – suspiros – todos nós éramos crianças.

Estes escotistas não são os culpados de pensarem assim. Somada às modificações pelas quais, de fato, passou o escotismo brasileiro não só agora, mas desde que chegou ao país, temos um sistema de formação que sempre se mostrou deficitário e, claro, uma idealização da nossa própria juventude. Provavelmente eu consideraria como “bom” e “tradicional” o escotismo realizado na década em que fui membro juvenil e o defenderia como o “verdadeiro escotismo”. Mas não é bom cair nesta armadilha.

Alteração do primeiro artigo da Lei Escoteira

Na última assembleia nacional, um pioneiro propôs que o Primeiro Artigo da Lei Escoteira fosse alterado. Apesar de eufórico e resvalando cá e lá no discurso, não foi uma proposta pautada por qualquer tolice pós-moderna, mas algo que ia ao encontro do que preconiza a religião deste jovem no que se refere ao “valor da vida”. A assembleia aprovou o encaminhamento e o CAN autorizou uma alteração provisória que deverá ser apreciada na próxima AN.

Não se sabe a razão, mas há quem diga que, com esta alteração, se perderá o “escotismo proposto pelo fundador”. E há enormes textos defendendo esta tese pela internet, como se o primeiro Artigo da Lei Escoteira tivesse sido redigido no Brasil. E, na verdade, até que foi…mas desvirtuado do original e de seu propósito.

Por que uma alteração?

Quando o movimento dava os primeiros passos no Brasil, o primeiro artigo da Lei, por erro na tradução ou por força ideológica daqueles que viam no escotismo uma extensão do seu meio (leia mais aqui), ignorou o texto original deste artigo e colocou a vida abaixo da etérea “honra”.

É que Baden-Powell, em uma de suas várias explicações plásticas, recorreu aos templários para discorrer sobre honra num tópico sobre “cavalheirismo”, na Conversa de Fogo de Conselho nr. 2, 20 e 21 do Escotismo para Rapazes. Disse o fundador que um templário “preferia morrer a faltar com sua honra”. Logo abaixo, B.-P. explica o primeiro artigo da Lei, afirmando que se o escoteiro conta alguma mentira, ele deve deixar o movimento e retirar seu distintivo [de promessa] do uniforme e não usá-lo mais, e acrescenta: “ele perde sua vida”. Não é preciso ter lido muito do fundador para saber que este sentido de “vida” não é literal, mas da “vergonha” de viver com uma mentira dita ou, no máximo, referindo-se à “vida escoteira”. Ou seja, não é algo que obrigue o escoteiro a gritar “Allahu Akbar” antes de apertar um botão. A versão brasileira radicalizou esta explicação e a estabeleceu como primeiro artigo.

Para o pioneiro e sua religião, o judaísmo, não há nada de mais valor do que a própria vida. Este pensamento é seguido por religiões abraâmicas e também pela Constituição Federal e toda lei ou tratado que defenda a proteção e dignidade humana. Sabendo disso, a proposta de alteração se aproximaria ao que foi escrito pelo próprio Baden-Powell: “a honra para o escoteiro é ser digno de confiança” e deixaria a versão tupiniquim um pouco menos…dramática.

O escotismo tradicional

Há uma maneira infalível de ganhar antipatia: afirmar que o escotismo como proposto por Baden-Powell, mesmo que reivindicado por muitas associações independentes e “tradicionais” atuais, nunca foi e não é praticado no Brasil (e isso não é necessariamente algo ruim). Não só pela questão de “reis e rainhas” formulada pelo fundador pensando na Inglaterra, mas pelas próprias concepções metodológicas propostas que aqui chegaram com vários adendos, interpretações e distorções. Ironicamente, muitas vezes é a isto – distorções – que chamam de “escotismo tradicional”.
O que sempre tivemos aqui foi um escotismo brasileiro, mas o que se diz “escotismo do fundador”, nada.

Estes adendos são resultados do número de intermediários que se propuseram a falar pelo escotismo brasileiro quando ele chegou aqui, principalmente oriundos do meio religioso e militar, levando (e isso é natural) a água ao seu próprio moinho. Esta época e todas as distorções que puderam surgir são chamadas de “escotismo tradicional”. Ou seja, algo que foi se repetindo em discurso até nos acostumarmos que o escotismo proposto por Baden-Powell é a mesmíssima versão brasileira ou a mesmíssima versão que vivenciamos em nossa juventude, independente da década; e já não mais a espontaneidade de um acampamento em equipes, mas várias crianças levando gritos de algum comandante de exército nenhum. Quem vende “escotismo do fundador” ou “tradicional”, vende fumaça. E repito: isto não começou agora, isto se dá no momento em que o escotismo pisou o país.

Por que uma lei?

O debate sobre a alteração deste artigo da Lei trouxe um dado que alarmaria qualquer organização educacional, mas que passa sem maiores pudores no movimento escoteiro: a dificuldade em entender enunciados, a má formação oferecida a escotistas e a péssima literatura nacional sobre escotismo. Uma prova disso é que para tentar dar algo de base à crítica deste oitavo pecado capital que supõe uma alteração do primeiro artigo (brasileiro) da Lei Escoteira, na internet existem escotistas recorrendo a um astrólogo que nega a contribuição da juventude ao longo da história. Isso acontece em 2018, ano em que comemoramos meio século do “Maio de 1968” na França e no mundo e justamente em um movimento que tomou a atuação juvenil em confrontos (como Mafeking) para redigir seu programa. Mas a ironia da situação é que como não acharam alguma citação de autoridades em educação ou do próprio fundador, recorreram à escala mais baixa da representação conservadora esclerosada que pode haver na internet. Diga-me com quem andas…

Cumprindo 100 anos de escotismo no país, ainda parece que há bastante dificuldade em entender o que é o método escoteiro ou o que significou a redação de uma lei e promessa que oferecessem ao jovem o sentimento de pertencimento…e ainda mais difícil admitir que, longe de um texto rigoroso e punitivo, lei e promessa serviriam como um simples e efetivo caráter lúdico de fraternidade e de aceitação ao conjunto.

Mas infelizmente, foram passando deste conjunto de brincadeiras (sérias, mas brincadeiras), formadas por lei, promessa e outras questões, até serem elevadas ao status de um severo código penal ou como uma espécie de 10 mandamentos que não podem sofrer alterações.

A ironia da situação é que, dentro das ressalvas de seu tempo, Baden-Powell foi a viva imagem do combate ao fundamentalismo metodológico e programático. E não só porque realizou modernizações nos artigos da lei, na promessa e no Escotismo para Rapazes até pouco antes de sua morte, mas porque ofereceu ao mundo uma alternativa à educação tradicional caduca da época, sem aquela rigidez, sem punição, sem colocar a juventude como passiva na construção de seu futuro. E o oposto disso, ou seja, um aglomerado de regras imutáveis sobre disciplina, garbo e crianças como papéis em branco sem nenhum sinal de senso crítico é o que vem sendo definido como “escotismo tradicional do fundador” por aqui.



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