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O coração de quem samba

Tags: dora
Não havia quem não parasse, nem que fosse por alguns instantes, para assistir Dora sambar na roda que acontecia todas as sextas no Centro do Rio.  Era um espetáculo a parte que encantava. Os movimentos delicados dos braços como se fosse uma bailarina, o acenar das mãos como uma rainha, a cintura que desafiava os olhos de quem olhava, pernas firmes com passadas de uma mulher decidida.  E o salto, sempre de salto alto,  nunca os tirava.  Dora  já havia passado dos 56 anos apesar de parecer que não tinha chegado sequer nos 45. Era motivo de inveja de muitas com a metade de sua idade.

Quase todas as sextas, em torno de 20:30, Dora chegava e sempre era cumprimentada pelos outros assíduos frequentadores  Nos dias que não chegava, sua ausência sempre era percebida. Dora tinha uma energia que fazia a roda samba brilhar. Cavaquinho, banjo, violão, surdo, tantan e pandeiro, todos pareciam estar em perfeita harmonia com as pernas de Dora. Não era Dora que sambava o samba, mas o samba que tocava de acordo com o Sambar de Dora.  Era mágico.

Sempre com uma maquiagem leve, um olhar de diva  e um sorriso nos lábios. E com esse sorriso e olhar, Dora afastava os homens que sempre insistiam em investir. Cada vez que um deles se aproximava, ela com toda delicadeza os tocava com o indicador no queixo e dizia: “Só estou aqui pra sambar querido!”.

Ninguém conhece o coração de quem samba, nem as dores que Dora  escondia atrás daquele sorriso.

Quem via Dora sambar jamais imaginaria a infância triste e pobre que teve, imaginaria as vezes que assistiu sua mãe ser espancada, e das vezes que também foi espancada pelo seu padrasto alcoólatra. Ninguém poderia imaginar que para fugir dessa realidade tão cruel, Dora fugiu de casa aos 17 anos e se envolveu com Ruberval, um homem truculento, mas quando bebia era pior ainda. Ninguém imaginaria que Dora passou mais da metade da sua vida suportando as traições, humilhações e as eventuais surras do seu marido. Desse relacionamento vieram os  filhos,  Wilson e Gisele. Wilson seguiu os passos do pai, e se envolveu em uma série de atividades ilegais.  Um dia o telefone tocou, Dora atendeu. Wilson estava morto. Até hoje não se sabe quem o matou.  Grávida e para fugir da violência de Ruberval, Gisele foi morar com Lecão. Esse era o apelido de Leonardo, com antecedentes criminais e dependência química.

Há mais ou menos cinco anos, Ruberval morreu de cirrose hepática. Numa sexta-feira qualquer, pela primeira vez, Dora foi a uma roda de samba. Desde estão, todos aqueles anos de mágoa, sofrimento e as dores que ela ainda sentia, Dora passou a deixar na roda de samba, como se suas lágrimas saíssem pelo suor.  

Numa sexta em especial, Dora colocou seu melhor vestido, e se olhando no espelho,  tentando conter as lagrimas que teimavam rolar pelo seu rosto apesar de todo esforço, passou um batom vermelho nos lábios, se maquiou como nunca. Dora não foi cair no samba, e sim em prantos.  Depois de tantos atentados contra sua felicidade, a vida ainda lhe reservou um amargo presente. Naquela manhã, Dora recebeu a notícia de que estava com câncer terminal e teria poucos meses de vida, talvez semanas.

Naquela sexta-feira ela sambou mais e mais bonito do que qualquer outro dia.  Dora se acabou de tanto sambar. Naquele dia, Dora transpirou mais, muito mais, do que qualquer outro dia.  Dora sambou como se fosse a última vez, deu um show e foi aplaudida de pé. Depois das palmas, Dora pegou sua pequena bolsa, acenou para todos agradeceu os aplausos e foi embora.

Quem a viu sambar jamais imaginaria que ela não voltaria. E não voltou. Nunca mais.



Bruno Nasser


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