Imagine o seguinte cenário. Você tem 119 anos e 11 meses. O fim da sua vida está à vista. Suas esperanças receberam golpes devastadores. Você foi informado por D'us que não entrará na terra para a qual tem conduzido seu Povo por quarenta anos. Você foi repetidamente criticado pelas pessoas que liderou. Sua irmã e seu irmão, com quem você compartilhou o fardo da liderança, já faleceram antes de você. E você sabe que nenhum de seus filhos, Guershon e Eliezer, irá sucedê-lo. Sua vida parece estar chegando a um fim trágico, seu destino não alcançado, suas aspirações não realizadas. O que você faz?

Podemos imaginar uma gama de respostas. Você poderia afundar na tristeza, refletindo sobre o que poderia ter acontecido se o passado tivesse tomado uma direção diferente. Você poderia continuar a implorar a D’us para mudar de ideia e permitir que atravessasse o Jordão. Você poderia se refugiar nas lembranças dos bons tempos: quando o povo cantou uma canção no Mar Vermelho, quando deu seu consentimento à aliança no Sinai, quando construiu o Tabernáculo. Essas seriam as reações humanas normais. Moshe não fez nada disso – e o que ele fez ajudou a mudar o curso da história judaica.

Durante um mês, Moshe convocou o povo e se dirigiu a eles. Suas palavras e orientações formam a essência e o conteúdo do livro Devarim, Deuteronômio. São extraordinariamente amplas, abrangendo a história do passado, um conjunto de profecias e advertências sobre o futuro, leis, narrativas, uma canção e um conjunto de bênçãos. Juntos, eles constituem a visão mais abrangente e profunda do que é ser um povo santo, dedicado a D'us, construindo uma sociedade que serviria de modelo para a humanidade em como combinar liberdade e ordem, justiça e compaixão, dignidade individual e responsabilidade coletiva.

Muito além do que Moshe falou no último mês de sua vida, é o que Moshe fez. Ele mudou de carreira. Ele mudou seu relacionamento com as pessoas. Não mais Moshe, o libertador, o legislador, o operador de milagres, o intermediário entre os israelitas e D'us. Ele se tornou a figura conhecida na memória judaica: Moshe Rabeinu, “Moshe, nosso professor.”

Assim começa Devarim– “Moshe começou a expor esta Lei”1 – usando um verbo, be'er, que não encontramos neste sentido na Torá e que aparece apenas mais uma vez no final do livro: “ E você deve escrever muito claramente [ ba'er hetev ] todas as palavras desta lei nestas pedras.”2 Ele queria explicar, expor, esclarecer. Ele queria que o povo entendesse que o judaísmo não é uma religião de mistérios inteligíveis apenas para poucos. É – como ele diria em seu último discurso – uma “herança de toda a congregação de Yaacov”.3

Moshe tornou-se, no último mês de vida, o mestre educador. Nesses discursos, ele faz mais do que dizer ao povo o que é a lei., ele explica a eles por que a lei é. Não há nada de arbitrário nisso. A lei é como é por causa da experiência do povo de escravidão e perseguição no Egito, que foi o seu tutorial sobre por que precisamos de liberdade, uma liberdade governada pela lei. Repetidas vezes ele diz: Vocês farão isso porque já foram escravos no Egito. Devem lembrar e jamais esquecer – dois verbos que aparecem repetidamente no livro – de onde vieram e como foram exilados e perseguidos.

Seu corpo não acompanhou seu povo quando eles entraram na terra, mas seus ensinamentos sim. Seus filhos não o sucederam, mas seus discípulos sim.

No musical Hamilton de Lin-Manuel Miranda, George Washington diz ao jovem e cabeça-quente Alexander Hamilton: “Morrer é fácil, jovem; viver é mais difícil.” Em Devarim, Moshe continua dizendo aos israelitas, na verdade: A escravidão é fácil; a liberdade é mais difícil.

Ao longo de Devarim, Moshe atinge um novo nível de autoridade e sabedoria. Pela primeira vez, nós o ouvimos falar extensivamente em sua própria voz, ao invés de meramente como o transmissor das palavras de D'us dirigidas a ele. Sua compreensão da visão e dos detalhes é impecável. Ele quer que as pessoas entendam que as leis que D'us lhes ordenou são para o bem delas, não apenas de D'us.

Todos os povos antigos adoravam deuses.Tinham leis. Mas suas leis não eram de um D'us; eles eram do rei, do faraó ou do governante - como no famoso código de leis de Hammurabi. Os deuses do mundo antigo eram vistos como uma fonte de poder, não de justiça. As leis eram regras feitas pelo homem para a manutenção da ordem social. Os israelitas eram diferentes. Suas leis não foram feitas por seus reis – a monarquia no antigo Israel era única em não dar ao rei poder legislativo. Suas leis vieram diretamente do próprio D'us, criador do universo e libertador de Seu povo. Daí a retumbante declaração de Moshe: “Observe [estas leis] cuidadosamente, pois isso mostrará sua sabedoria e entendimento às nações, que ouvirão sobre todos esses decretos e dirão: 'Certamente esta grande nação é um povo sábio e entendido.'”4

Nesse momento decisivo de sua vida, Moshe entendeu que, embora não estivesse fisicamente com o povo quando eles entrassem na Terra Prometida, ele ainda poderia estar com eles intelectual e emocionalmente se lhes fornecesse os ensinamentos para levarem consigo para o futuro. Moshe tornou-se o pioneiro da talvez maior contribuição do judaísmo ao conceito de liderança: a ideia do professor como herói.

Heróis são pessoas que demonstram coragem no campo de batalha. O que Moshe sabia era que as batalhas mais importantes não são militares. Elas são espirituais, morais, culturais. Uma vitória militar muda as peças do tabuleiro de xadrez da história. Uma vitória espiritual transforma vidas. Uma vitória militar quase sempre dura pouco. Ou o inimigo ataca novamente ou um novo e mais perigoso oponente aparece. Mas as vitórias espirituais podem – se a lição não for esquecida – durar para sempre. Mesmo pessoas bastante comuns, Yiftá, por exemplo (Livro dos Juízes, capítulos 11–12), ou Sansão (capítulos 13–16), podem ser heróis militares. Mas aqueles que ensinam as pessoas a ver, sentir e agir de maneira diferente, que ampliam os horizontes morais da humanidade, são realmente raros. Entre eles, Moshe foi o maior.

Ele não apenas se torna o professor em Devarim. Em palavras gravadas nos corações dos judeus desde então, ele diz a todo o povo que eles devem se tornar uma nação de educadores:

Dê a conhecer a seus filhos e aos filhos de seus filhos como você esteve uma vez diante do Senhor, seu D'us, em Horeb.5

No futuro, quando seu filho lhe perguntar: “Qual é o significado dos testemunhos, decretos e leis que o Senhor nosso D'us ordenou a você?” diga-lhes: “Fomos escravos do Faraó no Egito, mas o Senhor nos tirou do Egito com mão poderosa ...”6

Ensine [estas palavras] a seus filhos, falando delas sentado em casa e viajando pelo caminho, ao deitar e ao levantar.7

De fato, os dois últimos comandos que Moshe deu aos israelitas foram explicitamente de natureza educacional: reunir todo o povo no sétimo ano para ouvir a leitura da Torá, para lembrá-los de sua aliança com D’us,8 e, “Escreva para vós mesmos este cântico e ensinai-o aos filhos de Israel”,9 entendido como o mandamento de que cada pessoa deve escrever para si um rolo da Torá.

Em Devarim, uma nova palavra entra no vocabulário bíblico: o verbo lmd, que significa aprender ou ensinar. O verbo não aparece nem uma vez em Bereshit, Shemot Vayicrá ou Bamidbar. Em Devarim aparece dezessete vezes.

Não havia nada semelhante com essa preocupação com a educação universal em outras partes do mundo antigo. Os judeus se tornaram o povo cujos heróis eram professores, cujas cidadelas eram escolas e cuja paixão era o estudo e a vida intelectual.

A transformação do fim da vida de Moshe é uma das mais inspiradoras de toda a história religiosa. Nesse único ato, ele libertou sua carreira da tragédia. Ele se tornou um líder não apenas para o seu tempo, mas para todos os tempos. Seu corpo não acompanhou seu povo quando eles entraram na terra, mas seus ensinamentos sim. Seus filhos não o sucederam, mas seus discípulos sim. Ele pode ter sentido que não havia mudado seu povo durante sua vida, mas em toda a perspectiva da história, ele os mudou mais do que qualquer líder já transformou qualquer povo, no povo do livro e na nação que não construiu zigurates ou pirâmides, mas escolas e casas de estudo.

O poeta Shelley disse a famosa frase: “Os poetas são os legisladores não reconhecidos do mundo”.10 Na verdade, porém, não são os poetas, mas os professores que moldam a sociedade, transmitindo o legado do passado a quem constrói o futuro. Esse insight sustentou o judaísmo por mais tempo do que qualquer outra civilização, e começou com Moshe no último mês de sua vida.