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Em Portugal, há um vinho para judeus que é feito em Meca

  Ilustração: Alex Gozblau

Luís Pedro Cabral
Vinho para judeus, feito em Meca. Uma antítese aparente, que só a geografia desfaz. O Ben Rosh, nome judaico do tio-avô de Daniela Rhua, é um vinho 'kosher'. Obedece às regras judaicas, que proíbem a mão humana em todas as fases da sua produção. É abençoado por um rabi israelita. Tem origem denominada em... Meca. Meca, Alenquer.
É uma aparente contradição histórica, de casta seleccionada, tonalidade rubi, reflexos acerejados, 12,5 graus de teor alcoólico. Se há coisas improváveis, esta é certamente uma delas: um dos vinhos mais consumidos em Israel, assim como nas mais representativas comunidades judaicas pelo mundo, brota dos solos argilo-calcários de Meca. Meca, Alenquer. Alenquer, Estremadura. 
Estremadura, Portugal, longe da região demarcadíssima do universo islâmico. A Comissão Vitivinícola da Região de Lisboa, à qual pertence, define assim este quadrante vinícola: "A Estremadura é de todas as nossas províncias a que manifesta uma complexidade mais acentuada, seja qual for o carácter que tenhamos de considerar. Começando pelo aspecto geológico, tem representação de todas as idades. Na apreciação climática pode considerar-se na transição entre a zona dos ventos húmidos e permanentes de Oeste e a dos estios secos. O tipo de vegetação da parte norte aproxima-se de um tipo da Europa Central, enquanto a extremidade meridional já apresenta características mediterrânicas. As terras de aluvião contrastam com as encostas onde abunda o calcário secundário e as várzeas opõem-se aos maçicos montanhosos da fronteira oriental. É uma terra de dispersão e pluralidade, sendo por vezes referenciada como terra onde abundam os paradoxos".
A presença assídua de um rabi já não nos causa qualquer desconforto. Até porque, antes de produzirmos os vinhos 'kosher', todos os nossos vinhos já eram feitos dentro dos seus parâmetros de pureza.
Paulo Rocha, diretor da Sociedade Agrícola Félix Rocha
Neste caso específico, não parecendo fazer sentido, faz. A produção de vinho para judeus em Meca, onde se encontra a Sociedade Agrícola Félix Rocha, é, aparentemente, um desses paradoxos. Talvez mais uma "ironia do destino", explicou Paulo Rocha, director-geral desta sociedade, ao lado de uma cuba gigante em inox, sob a penumbra das adegas de Meca, onde é produzido o Ben Rosh, vinho kosher, claro está. Foi, portanto, o destino que um dia trouxe à nossa Meca o rabi Boaz Pash, judeu ortodoxo, nascido em Jerusalém, representante maior em Portugal do Grão-Rabinato de Israel. 
A sua posição, porém, é de natureza nómada. Antes de assumir funções à frente da comunidade judaica portuguesa, já tinha estado em Kiev (Ucrânia), São Paulo (Brasil) e Mizoram (Índia). Encontra-se actualmente na Polónia, na cidade de Cracóvia. Paulo Rocha guarda essa lembrança, como uma região de origem demarcada na memória. "O rabi Boaz Pash é um alto-dignitário da comunidade judaica no mundo. Na altura, informaram-nos que era como receber o Papa. Naturalmente, ficámos muito orgulhosos. E algo nervosos também". Vistas bem as coisas, não havia razão para isso. "Para nosso espanto, era uma pessoa de trato simples", recorda Paulo Rocha.
A função do rabi-mor em Meca (Portugal – nunca é de mais dizê-lo), revestia-se da mais alta importância, caso contrário a sua presença nesta freguesia também não se justificava. Boaz Pash tinha a suprema missão de proceder à kosherização do vinho. Processo que tem regras extremamente rigorosas, não obedecessem estas ao livro sagrado do judaísmo, a Torah. Para começar, todo o ritual só pode ser conduzido por um judeu. 
"Todos os responsáveis pela produção do vinho não lhe podem tocar em fase alguma, quer nas uvas, quer no vinho, por não estar purificados de acordo com o Livro Sagrado. Desde a víndima, o controlo do rabi é exercido de forma rigorosíssima", reforça o director-geral da Sociedade Agrícola Félix Rocha.
A produção deste vinho que, rezam as crónicas locais, também escorre muito bem nas gargantas de Alenquer, é levada muito a sério pelos seus exigentes importadores. E não podia haver melhor prova disso que a presença do seu rabi, que por via das dúvidas, se fez acompanhar por dois enólogos judeus, para que nada fosse deixado a uma impureza do acaso.
Nenhuma fase do processo é feita sem a presença do rabi. "Cada botão, cada manípulo, tem de ser accionado pelo rabi. Cada depósito tem de ser criteriosamente inspeccionado, atestado o seu grau de limpeza, aprovado, declarado puro e, finalmente, certificado de acordo com o Livro Sagrado judaico", explicou Paulo Rocha.
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Religião demarcada
Kosher ou kasher, do hebraico, numa tradução de rédea-solta significa "legítimo"; "apropriado". Na elaboração do vinho kosher não é propriamente obrigatória a presença de um rabi, que pode fazer-se representar. Presença que não se dispensa quando o vinho é para ser consumido em ocasiões ou cerimónias religiosas. De acordo com a palavra sagrada, estes vinhos não podem ser produzidos de videiras com idade inferior a quatro anos.
Caso a vinha se encontrar em solo "demarcado" da Bíblia, esta deverá respeitar um pousio de sete anos. Para além disso, não é permitido qualquer outro tipo de cultivo nessa área. Os rabis mais ortodoxos, como foi o caso de Boaz Pash, exigem ainda que o "fermentado" seja pasteurizado, produzindo um vinho a que se chama mevushal, como acontece com os vinhos kosher produzidos pela Sociedade Agrícola Félix Rocha. 
A pasteurização tem pelo menos uma vantagem no glorioso momento que é abertura de uma garrafa deste vinho. A garrafa pode ser aberta por qualquer alminha, seja crente ou não, judeu ou não. O vinho não perderá por isso a sua denominação kosher. No entanto, uma coisa é abrir a garrafa, outra, beber o vinho. 
A propósito: a generalidade dos tintos kosher, em particular os produzidos em Meca, segundo os sacros enólogos, são vinhos com vincada estrutura e potência, sendo que o branco é de temperamento mais requintado, com indeléveis características minerais, presentes dos solos calcários de Meca.
Para os produtores deste vinho, a imponência e a presença assídua da entidade controladora nas suas diversas fases de elaboração, é sempre uma questão a ser gerida com pinças diplomáticas. À fase de elaboração do vinho, precede um imenso trabalho de minúcia na limpeza dos equipamentos que serão utilizados na produção. 
Todo e qualquer equipamento não pode ser purificado por outra pessoa que não seja judia. Pelas mesmíssimas razões, tanto os equipamentos, como o próprio vinho, só podem ser manuseados por judeus, para que não haja "contaminação" por algum agente em deficit de fé, o mesmo acontecendo na fase em que extrai o mosto na prensa. 
Aliás, quando são vindimadas, as uvas já são sujeitas a um metódico processo de selecção. Apenas as uvas inteiras e saudáveis são aceites para a elaboração de um vinho kosher. Na elaboração de um vinho kosher não são utilizados barris de madeira de carvalho. É elaborado em depósitos de aço inoxidável. Escusado será dizer, imaculados e devidamente abençoados. 
Quaisquer produtos que sejam utilizados na elaboração do vinho, por maioria de razão, devem ser igualmente kosher. No engarrafamento, as regras não são menos exigentes. O vinho é obrigatoriamente colocado em garrafas novas, impolutas. Só depois de aprovado e abençoado por um rabi, se considera kosher. Um por cento deste vinho deve ser entregue aos pobres, a quem se não deve negar o pão (que não vem ao caso) e o vinho.
Para um produtor clássico de vinhos, todas as regras e o cerimonial que estas implicam requer uma certa parcimónia. São hábitos que só o tempo concede. "Não escondo que de início tudo isto foi um pouco estranho para nós. Mas depois lá nos acostumámos à companhia". Neste caso, mais que noutros, o cliente não é apenas soberano, mas sagrado. "Eles têm muita atenção desde a vinificação para a frente. Para trás, não é tanto porque é um processo que está ligado quase exclusivamente à terra, vegeta naturalmente. Mas, atenção: mesmo a fase de vindima é sujeita a um controlo apertado", relembra Paulo Rocha.
O primeiro branco kosher
O primeiro vinho kosher tinto produzido em Portugal foi em Belmonte, que tem ligações umbilicais à comunidade judaica portuguesa. Uma experiência, porém, que não terá corrido pelo melhor, provavelmente por causa das exigências de produção. Na Sociedade Agrícola Félix Rocha, a grande produção é igualmente de vinho tinto. Mas, o primeiro vinho branco kosher feito em terras portuguesas, veio dos solos da freguesia de Meca.
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O momento de prensar a uva para a produção deste inaugural branco ficou gravada na memória dos seus produtores. A ocasião, como é óbvio, não podia dispensar a presença do rabi. "A prensa automática tem um programa que demora cerca de duas horas. O rabi Boaz Pash fez questão de ser ele a ligar a máquina". 
Depois, para incredulidade dos presentes, "esteve ali as duas horas em frente à prensa, sentado, a entoar passagens do Livro Sagrado. De maneira que nós tivémos um almoço descansadíssimo”, recorda Paulo Rocha. Já lá vai mais de uma década, desde esse momento. Neste, "a presença assídua de um rabi já não nos causa qualquer desconforto. Até porque, antes de produzirmos os vinhos kosher, todos os nossos vinhos já eram feitos dentro dos seus parâmetros de pureza, mais coisa, menos coisa".
Pensando bem, um dos factores que pesou na escolha do Grão Rabinato de Israel para o vinho kosher de Meca, "foi o facto da nossa apanha da uva já ser mecânica. Para além de as nossas cubas serem também de inox, que é outra exigência sem qual a kosherização do nosso vinho não seria possível".
A decisão de começar a importar o vinho de Meca foi do Grão Rabinato de Israel, em uníssono com o Triangle K, dos Estados Unidos da América. Cada garrafa deste vinho, tem de ser igualmente aprovada e certificada por estas duas entidades. A especificidade dos solos de Meca e a qualidade do vinho, pesaram mais que a sua toponímia.
E assim nasceu o Ben Rosh, tinto, branco, puro no que é possível no processo de produção, de casta imaculada, de colheita asséptica, longe da mão humana em tudo quanto não for incontornável. No restante, as características de um vinho kosher, como não podia deixar de ser, não diferem muito das de outro vinho de grande consumo. 
Este vinho produzido em Meca é hoje um dos vinhos mais consumidos pela comunidade judaica de Israel, assim como de Inglaterra e dos Países Baixos, tendo também consumidores na enorme comunidade judaica norte-americana.
Quanto à "marca" Ben Rosh, o seu nome não poderia estar mais ligado a Portugal. Corresponde ao nome judaico de Artur Carlos de Barros Basto, filho de Amarante, oficial condecorado na Primeira Guerra Mundial, onde integrou o Corpo Expedicionário Português, na Flandres, que mais tarde se converteu ao judaísmo, a quem se deve a fundação da comunidade judaica no Porto. 
Ao capitão Barros Basto devem também muitos judeus a sobrevivência, durante a II Guerra Mundial, pois graças à sua intervenção escaparam do Holocausto nazi. Na sua conversão, Barros Basto, conhecido igualmente por ter sido o homem a erguer no Porto o estandarte da República, em 1910, viria a adoptar o nome Abraham Israel Ben Rosh. E foi Ben Rosh quem fundou a chamada "Obra do Resgate", em 1926, também na cidade Invicta, destinada ao retorno dos chamados criptojudeus ao culto hebraico pleno.
Nunca o capitão Barros Basto, aliás, Ben Rosh, imaginou que o seu nome judaico fosse inscrito no rótulo de uma garrafa de vinho. E muito menos que este fosse produzido em Meca.
(Autor escreve de acordo com a antiga ortografia.)


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