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Quatro tiros no rosto de Ângela Diniz

Morreu Doca Street. Uma dor no peito marcou seu último suspiro. Enfarte fulminante aos 86 anos. Uma vida de rico, uma vida vazia. A vida de um playboy. Isso assim seria se não tivesse apanhado a arma caída no chão da própria bolsa de Ângela Diniz. A partir desse ato, ele teve sua vida repentinamente preenchida pelo adjetivo de, no início, justiceiro, depois, assassino covarde. Em 1976, num canto do mundo com o significativo nome de Praia dos Ossos, ele meteu quatro tiros no belo rosto da namorada.

No primeiro julgamento, ele saiu ileso. Ou melhor, saiu como herói. Centenas de pessoas o esperavam na porta da frente do lugar do julgamento. Ele havia lavado a honra de todos os cornos do mundo. Ângela Diniz morreu com pouco mais de trinta anos, com várias balas no corpo. Ela foi vista pelo público como uma socialite desregrada cujo único motor era o uísque com cocaína. Doca consumia tudo isso também. Mas ele era homem. Tinha o direito de consumir e além disso de punir a namorada que, aos seus olhos, lhe era infiel. Ninguém segurava Angela Diniz! Ou ainda, segundo a avaliação do senso comum da época: todos a seguravam, mas só nos poucos minutos do gozo. Cheia de esperma, ela voltava para o uísque com cocaína e mantinha olhos acesos para homens ao redor de Doca ou de outros. Assim era vista pelos que ovacionaram o playboy. Doca Street tinha, afinal, “dado um jeito nela”!

No segundo julgamento, feito anos depois. Doca foi condenado a 15 anos de prisão em 1981. Só cumpriu a pena na cadeia, de fato, três anos. Mas a saída do julgamento para a rua, desta vez, já foi diferente. O Brasil havia mudado um pouco. Foi recebido por mulheres que o chamaram por aquilo que ele realmente era: assassino. Então veio o silêncio e, finalmente, como não poderia deixar de ocorrer, saiu um livro dele próprio sobre o caso. Vendeu bem o livrinho. Ainda hoje, qualquer história sobre Doca, deve vender alguma coisa. As pessoas tem um interesse mórbido por assassinatos, em especial se ocorrem com ricos. Todos querem saber como os ricos vivem e porque morrem se matando por aí. Há certa vingança popular nisso.

A história de Doca e de Ângela Diniz é a história do Brasil. Ela retrata bem o que ocorreu com o nosso capitalismo. O avô de Doca, Jorge Street, foi um empresário progressista, construtor da Vila Zélia, e talvez o símbolo de nossa industrialização. Com Jorge Street o Brasil conheceu o taylorismo e o fordismo. Por meio dele, o capital mostrou que a fábrica queria organizar não só o trabalho, mas toda a sociedade. Quando seu neto, Doca Street, se tornou um playboy, nosso capitalismo industrial estava apontando para o fim. Nossa burguesia não sabia bem o que fazer, se continuava apoiando a Ditadura Militar ou não. Se continuava tendo indústrias ou se virava acionista e entrava para o mundo financeirizado que viria. As indústrias multinacionais eram as verdadeiras centrais do trabalho. Lula gritando por greve em São Bernardo não era o começo de uma nova era de pujança na economia, mas, ao contrário, o início da decadência da grande indústria e do fordismo. O PT nasceu da decadência, tanto quanto o próprio Doca. Ambos foram frutos do início de nossa desindustrialização e da ponte para o mundo do capitalismo financeirizado de hoje.

A história de Doca e de Ângela é a história da mulher do Brasil. Uma socialite toma quatro tiros na cara. E como vítima logo se torna culpada. Entre a morte dela e a de Marielle, um número incontável de mulheres morreram nas mãos de homens por motivos banais e por motivos políticos. E apalpadelas degradantes ocorreram ao infinito antes de acontecer com a jovem deputada do PSOL, Isa Penna. Ela foi assediada por um colega de trabalho, um deputado, e hoje mesmo vários dos colegas dele o apoiaram. Todos com saudades do tempo que eu vivi e eles não, o de poderem estar diante do Fórum quando da saída do julgamento de Doca Street. Estariam lá gritando: “mito”. Todo idólatra de covarde grita “mito”.

A atitude dos colegas masculinos de Isa, e o silêncio vergonhoso da mulher mais votada na Alesp, Janaína Paschoal, mostram que Doca Street morreu de corpo, não de alma. Ele está vivo tanto quanto todos os que mataram lideranças de trabalhadoras no campo e na cidade nos últimos quarenta anos, nesses anos todos de democracia. No Brasil todos ficam indignados se uma mulher é tratada como igual num debate. No debate temos que tratar  a mulher como criança. Os identitários semifascistóides assim exigem Querem a mulher infantilizada. Mas poucos se indignam quando a mulher perde direitos. A mulher trabalhadora perde o direito de ter unhas para pintar. A mulher deputada perde o direito de falar sem ser apalpada. A mulher vereadora perde todos os direitos ao ser chacinada em esquina do Rio. Todas essas mulheres estiveram bem longe do álcool e da cocaína, mas elas são vistas por muitos homens como Ângela Diniz era vista: “uma vagabunda”.

Em um país que logo estará dividido entre burros e jacarés, tudo muda rápido sem que nada mude efetivamente. Por incrível que pareça, isso não nos faz desistir.

Paulo Ghiraldelli Jr., 63, filósofo

Foto da capa: Ângela Diniz



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