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CAPITALISMO ATUAL

Capitalismo! Durante alguns anos evitei o uso dessa palavra. A filosofia social me levou a outras paragens. Uma tal palavra havia sido marcada demais pelo discurso sociológico e pelo jargão político. Além disso, cheguei a conjecturar que não soubéssemos sobre o que estávamos falando ao pronunciar “capitalismo”. Volto agora ao uso do termo. A partir do fina de 2018, premido pelas necessidades da estar na linha de frente do “Canal do Filósofo” no Youtube, não pude evitar o termo.

Vivemos no capitalismo. Ninguém com algum juízo tem dúvida sobre isso. A maneira como produzimos o que precisamos e reproduzimos a própria sociedade está umbilicalmente ligada a um desiderato inerente do capital, que é sempre buscar sua própria acumulação crescente. Todavia, esse desiderato não tem sido feito de modo sempre igual. As dúvidas que pairam entre nós é como que adjetivamos o capitalismo.

Há os que usam “capitalismo pós-industrial” ou “capitalismo pós-fordista”. Existem os que preferem “capitalismo cognitivo” ou até mesmo “capitalismo biocognitivo”. A terminologia envolvida nisso tem crescido na proporção que surgem autores sobre esse tema, isto é, a respeito de qual capitalismo é o nosso atual. Essas quatros acepções me bastam. Elas parecem dizer tudo que preciso para descrever a base de produção e reprodução social dos tempos que vivemos.

Capitalismo pós-industrial não significa um capitalismo sem indústria, mas sim um capitalismo em que as fábricas emblematicamente chamadas de indústrias, responsáveis pela produção material, perderam a hegemonia diante das empresas e diante de formas de produção social outras, quanto ao comando da economia na produção e reprodução social. Atualmente a sociedade está trabalhando como um todo. Ela é a grande “fábrica”.

Capitalismo pós-fordista é o mesmo que capitalismo pós-industrial ou pós-grande indústria. Diz respeito a um capitalismo que dispensou a maneira pela qual a típica fábrica do século XX se fez presente. A fábrica criada nos moldes do empresário americano Henry Ford (1863-1947) perdeu o protagonismo já no final do século XX e, agora, parece estar com seus dias mais que contados.

Recordemos o que foi o capitalismo fordista.

A esteira rolante na chamada “linha de produção”, funcionando segundo os estudos de tempos e movimentos que possibilitaram acoplar o homem às máquinas, fora desenvolvido pelo engenheiro Friedrick Taylor (1856-1915). O método do taylorismo foi imortalizado como sendo o coração técnico do fordismo. Mas o fordismo não foi apenas um modo de organizar a fábrica. Para os que viveram o século XX ele se tornou quase que sinônimo de capitalismo e como os fundamentos da boa sociedade moderna.

O fordismo foi o responsável pela produção em massa, pelo barateamento de mercadorias e, então, pela criação da chamada “sociedade de consumo” ou “sociedade de consumo de massa”. Essa sociedade propiciou uma mudança profunda nos costumes, cujos símbolos foram no início o carro ao lado da casa e o liquidificador na cozinha. A calça produzida em série, o célebre jeans da “calça Lee” dominou o Mundo tanto quanto a Coca Cola. O ícone cinematográfico do início dessa era, mas que valeu para toda ela, foi o personagem de Chaplin, o imortal Carlitos. Até hoje, em que pese que o fazem defasadamente, os professores de colégio explicam o capitalismo para os jovens passando para eles o filme Tempos modernos.

No capitalismo fordista o movimento operário cresceu. Pediu direitos. Depois de um tempo, exigiu direitos. Mesmo dominada corporalmente pelas engrenagens de uma fábrica que pouco requisitava do operariado em termos de conhecimento, pois os movimentos repetitivos eram maquinais e já previam a substituição do operário pela máquina, a classe operária sindicalizou-se e forçou o capital a ceder direitos ao mundo do trabalho.  Nessa época o estado se organizou de um modo menos liberal. O Welfare State tornou-se sinônimo do estado ideal. Na Europa, isso se deu pela herança da social-democracia, nos Estados Unidos por um progressismo peculiar que resultou no New Deal. A saúde, a moradia, a escola pública passaram a contar como direitos do trabalhador enquanto direitos de cidadania. Ser cidadão, aliás, passou a ser trabalhador e vice-versa. E alguns lugares o operário tornou-se o cidadão par excellence. No capitalismo industrial fordista, em especial entre o fim da Segunda Guerra Mundial e os anos setenta, a jornada de trabalho diminuiu e os salários aumentaram. A desigualdade do capitalismo, que havia sido sua marca até 1929, cedeu significativamente durante esse tempo.

Durante esses anos, no Ocidente a política da burguesia passou a ser a de “ceder os anéis para não perder os dedos”. Assim aconselhavam os líderes sindicais ao patronato. E em alguns casos não aconselhavam, mas ameaçavam. Aludiam ao fato de que, caso a via reformista não vingasse, os trabalhadores optariam pela revolução comunista, a via de Moscou, a política apoiada pela URSS no então chamado Terceiro Mundo.

Os sindicatos cresceram e geraram fundos de pensão bastante polpudos. Tanto quanto as empresas, nesses anos, eles investiram no mercado financeiro. Foi o tempo dos “anos de ouro” da economia industrial de bens materiais. Tivemos então a época do autêntico valor do “American Way of Life”. Também foi a época da Guerra Fria, do nascimento dos Mad Men – os homens do marketing. O consumo ultrapassou as necessidades básicas e gerou uma sociedade do status, da competição e, diga-se de passagem, da produção da inveja. Preparou-se aí o que viria quando do canto do cisne dessa época: a “sociedade do espetáculo” em que a disputa entre “ser versus ter” perdeu espaço para a vigência do “aparecer”. O mundo fetichizado das mercadorias se fez valer. O mundo do trabalho alienado se fez sentir. Tudo que Marx havia teorizado filosoficamente era visível, menos a teoria que previa a queda tendencial da taxa de lucro e os empecilhos para a acumulação do capital. Só agora, no capitalismo vigente, podemos perceber que aquela época não correspondia à regra do capitalismo, mas sim a um período de exceção!

Esse capitalismo industrial e fordista conseguiu gerar uma enorme classe média nos Estados Unidos. Outros países industrializados viram nascer algo parecido, e os costumes americanos se difundiram. Países do Terceiro Mundo também tiveram algum crescimento de suas classes médias e criaram movimentos nacionalistas. O neocolonialismo cedeu espaço para o imperialismo. As independências políticas tardias ocorreram na África e na Ásia. Em cada país o impacto disso que então se rebatizava de “moderno” passou a impactar as leis vigentes. Ao final dos anos cinquenta o mundo parecia estar bem arrumado, bipolarizado de modo harmônico. Nada parecia indicar que uma década depois tudo iria virar de cabeça para baixo. Mas virou.

Estudantes, operários, movimentos de mulheres, movimentos negros, grupos de libertação de todo tipo foram se aglutinando em um movimento de protesto mundial. O “Maio de 68” foi o cume desse vagalhão. O mundo deveria mudar de rumo. Era não só a época de pedir direitos mas fundamentalmente a de se ter o direito de inventar direitos.

Nos Estados Unidos reclamava-se, então, da Guerra do Vietnã. Os negros queriam que as leis segregacionistas acabassem de vez. As mulheres conheceram a pílula e a liberdade vinda de poderem pertencer ao mundo do trabalho. “Do lado de lá” da então chamada Cortina de Ferro, no mundo do Império Soviético que se arvorava em se dizer socialista, os jovens pediam liberdade. A juventude “do lado de cá” queria o socialismo – ainda que, para muitos, não se tratava de imitar o que havia “do lado de lá”. A Primavera de Praga foi o equivalente “do lado de lá” ao Maio de 68 “do lado de cá”. Também eles lá viviam a “sociedade industrial”. Também eles haviam se educado por meio de uma jornada de trabalho melhor. Tiveram até o seu tipo de taylorismo. O estakanovismo criado pelo mineiro Andrei Stakhanov (1906-1977), condecorado com a medalha-título de “Herói do Trabalho Socialista”, era um arremedo do que se fazia na sociedade capitalista.

Maio de 68 foi a última grande pretensão de revolução mundial. Os filósofos e sociólogos já encheram de tinta muitos papeis sobre o movimento e a época. Às vezes falamos de tal época só lembrando da luta por novos costumes e pelo sonho de uma nova política. Não raro, nos esquecemos de mencionar que os anos setenta desencadearam a mudança do capitalismo. Quem sabe Maio de 68 e todo o movimento da “contra-cultura” que se verificou nos anos sessenta não tenha sido parte das transformações que puseram fim na época do fordismo e da hegemonia da grande indústria?

Podemos voltar nossa atenção para alguns pontos da história econômica. Creio que isso deve ser útil aqui.

Terminada a II Guerra Mundial, os Estados Unidos passaram a reconstruir a Europa e o Japão, e lançaram algum dinheiro na América Latina e outras paragens. Fizeram o que tinham de fazer no sentido de promover a vitalidade do capitalismo, buscando tirar boa parte do mundo da influência das esquerdas internas de cada país e dos desejos expansionistas da URSS. Os Estados Unidos tinham o monopólio da produção do meio de pagamento do mundo capitalista, ou seja, o dólar, referenciado no ouro. Enquanto os países reconstruídos precisaram de dinheiro, os Estados Unidos não se fizeram de rogados. O dinheiro chegou na Europa e Japão. A indústria desses países se tornou competitiva e logo vieram a impor aos Estados Unidos um começo de déficit na balança de pagamentos. Os Estados Unidos precisavam, então, desvalorizar o dólar e tornar seus produtos mais competitivos para a exportação. No entanto, não podiam assim agir, pois o dólar era também a moeda mundial, a que todos confiavam, sendo ela a atrelada ao ouro. Mais que seu poderio bélico, era isso que fazia dos Estados Unidos uma potência hegemônica. Os americanos se viram em um impasse.

No governo de Richard Nixon o déficit comercial americano se acentuou. Sua dívida externa cresceu de modo significativo. Ninguém mais acreditava que havia em Fort Knox o ouro necessário para cobrir o dólar posto na praça. O governo americano estava de cabeça quente. A solução veio por meio de uma atitude um tanto estonteante.

Em um ato unilateral, o presidente Nixon simplesmente desfez a relação ouro-dólar, trazendo a moeda americana para uma situação exclusivamente fiduciária, ou seja, uma moeda baseada na confiança e tendo como lastro a riqueza do país. Isso desestruturou a vida econômica mundial. A taxa de câmbio, até então fixa, tornou-se flutuante. Os Estados Unidos passaram a olhar para suas necessidades internas, e fizeram o necessário para reduzir seu déficit. O governo americano desvalorizou o dólar e, com isso, reduziu sua dívida para com o resto do mundo.

Com o câmbio flutuante, as medidas de desregramento se expandiram pelo globo terrestre. Isso era tudo que a city londrina precisava para se parecer ainda mais com uma protofutura Wall Street. A desregulamentação fez o fluxo de capital e moedas poder viajar para todas as direções do planeta. As barreiras erguidas contra o capital através de regras nacionais foram caindo. As massas de dinheiro foram procurando os lugares mais capazes de proporcionar o acúmulo do capital. Foi nessa época que o Terceiro Mundo iniciou seu endividamento, que gerou as crises dos anos oitenta. O dinheiro barato nos bancos e de fácil trânsito foi o canto de sereia para os técnicos de governos do Terceiro Mundo, interessados no desenvolvimento ou mesmo só interessados em fazer pseudobenfeitorias que mantivessem oligarquias locais no poder.

Com o surgimento dos computadores em associação com a Internet, todos os negócios, uma vez sem barreiras nacionais, foram se fazendo em tempo real. O volume de dinheiro nas telas adquiriu aspectos astronômicos, jamais pensados quando as aplicações ainda se faziam segundo a relação ouro-dólar e com restrições de mercados setorizados. Hoje em dia os mercados funcionam 24 horas por dia no mundo todo. O fluxo do dinheiro de uma parte para outra em um número sem fim de negócios puramente financeiros é sem dúvida o que há de mais dinâmico na vida atual.

O capitalismo sempre implicou no regime de créditos. Trata-se da financeirização. Todavia, só de alguns anos para cá passou realmente a ser hegemônico mundialmente. O capitalismo regrado pelo mercado financeiro (ou melhor, desregrado!) tornou-se o capitalismo par excellence. Em outras palavras: é no âmbito da financeirização que a acumulação do capital se realiza de modo mais acentuado – o que é o escopo do capitalismo. O “ismo” é exatamente isto: o regime no qual o que importa é o capital, o seu crescimento, seu processo de acumulação cuja pretensão é seguir ao infinito.

Basicamente, ele é o regime de fornecimento de créditos para a indústria e negócios. Principalmente a partir do final dos anos setenta, deu origem a um processo endógeno de venda de papéis capazes de gerar lucro descolados do setor produtivo. Os ricos deixaram suas empresas nas mãos de executivos e passaram a ser acionistas delas mesmas e de outras. Além disso, trouxeram a classe média para este campo, com a ilusão de participação e de se tornarem “proprietários” de meios de produção.  A financeirização se realizou como um processo que conquistou o âmbito mental e prático de toda a sociedade. Bastou os setores médios da sociedade, incluindo aí trabalhadores assalariados, poupar um pouco, e eis que esses setores procuraram algum papel bancário para comprar e ver seu dinheiro valorizar ou ao menos não perder valor. Os trabalhadores, através de investimentos de seus fundos de pensão em papéis, também alimentam o crescimento do capital financeiro. Os cartões de crédito passaram a ser utilizados individualmente por todos, inclusive por trabalhadores de pequena renda. Isso sem contar o próprio Estado que, premido pelas necessidades de investimentos (para o bem estar social, no sentido de responder às reivindicações geradas no contexto da luta classista; guerras de todo tipo etc.), adquiriu dívidas públicas capazes de fornecer seus títulos, em geral os mais confiáveis. Os títulos de dívidas públicas foram autorizados a se transformarem em papeis negociáveis (titularização). Não foram poucos os que aprenderam a comprar títulos da dívida como uma prática segura de ver ampliados seus rendimentos.

A ideia básica do capitalismo sob o regime hegemônico do campo financeiro é que o crédito, inerente ao mundo produtivo, se desloca deste e passa a girar em roda própria com a única finalidade da acumulação do capital.

O que é o crédito? Forneço-lhe um dinheiro hoje para você pagar seus empregados e conseguir ampliar sua capacidade produtiva comprando máquinas, apostar em nova logística e preparar seu marketing, e você quita sua dívida para comigo quando vender a sua produção. Da minha parte, que sou seu credor, deixei de lado o dinheiro como elemento para a troca e transformei o dinheiro em mercadoria, cujo preço são os juros, que virão juntos no retorno do meu capital emprestado. Este mecanismo é inerente ao regime industrial capitalista. Sempre existiu. Durante todo o século XX, esse mecanismo foi ganhando vida própria.  Mas o modo como se desprendeu da própria produção de mercadorias e se tornou um campo próprio de ampliação do capital é algo do pós-anos setenta no mundo, e vigente para valer, no Brasil, a partir das últimas duas décadas. O capitalismo feito desse modo é o sonho realizado do capital. Por que um sonho realizado?

Tomemos o capital como Marx o denominou, ao menos em algumas passagens de seus escritos: “o sujeito autômato”. A definição do sujeito moderno é dada pela autonomia, o capital, não sendo humano, mas se comportando como sujeito, é o grande mestre do automatismo. Qual o objetivo desse automatismo? Qual o sonho do capital?

Desde o início do capitalismo, o sonho do capital era romper com as amarras físicas do mercado. Era poder voar sozinho, num mundo próprio. O mundo virtual pelo qual o dinheiro agora anda, sem barreiras, é seu caminho ideal realizado. A equação vital para o capitalismo industrial era D-M-D’: dinheiro empregado para se produzir a mercadoria que poderia gerar mais dinheiro por conta do valor gerado na produção e realizado na comercialização. A equação vital para o capitalismo financeiro, diferentemente, é D-D’: dinheiro que gera dinheiro por conta de crédito, ou seja, dos financiamentos, onde se obtém juros.  Desfazer-se do vínculo com a mercadoria, livrar-se da matéria, foi o modo como o capital conseguiu se fazer como “capital fictício”, para usar uma expressão de Marx. É tendo esse tipo de capitalismo como hegemônico que, hoje em dia, vivemos. Temos mil e uma indústrias no mundo, fazendo mercadorias de todos os tipos, mas é no processo de compra e venda de papeis, ou seja, de ações de empresas, de compra e venda de dívidas e de seguros e de todo tipo de derivativos que o capital se reproduz de modo mais acentuado. Esse regime não surgiu à toa. Ele tem toda uma história. É a própria história do século XX.

A bolsa de valores é um dos exemplos mais fáceis para se mostrar a vida do capital fictício e ao mesmo tempo as consequências deste na vida social.

O exemplo da empresa-faculdade ajuda no entendimento da trama sob a qual vivemos. Note-se uma faculdade que joga o preço de suas mensalidades para baixo, a fim de lotar salas de aula. Paga mal os professores e fornece um ensino de péssima qualidade. Dali saem alunos aquém das necessidades individuais e coletivas de uma determinada sociedade. Dali não sai nenhuma pesquisa. Mas, em termos de patrimônio comprado ou alugado a faculdade-empresa cresce, e o número espantoso de alunos a faz ter grande visibilidade social. Com a ajuda de algum marketing, eis que a mágica de fazer algo aparecer no sentido do que se deseja se realiza fácil! Ela pode então, junto com outras empresas não educacionais ou mesmo educacionais, colocar ações e títulos para a venda. Essas ações aparecerão no mercado de ações como tendo um valor crescente. “Vamos comprar ações daquele grupo lá, onde a faculdade X está presente, pois ela só cresce, nunca vai falir”. Desse modo, a faculdade como empresa educacional aparece no mercado financeiro como alguma coisa boa e promissora. E logo a sociedade passa a avaliar a tal faculdade pelo que ela mostra no mercado de ações, sua capacidade de gerar investimentos e fazer a economia se agitar, e não pela sua utilidade social enquanto aquilo que seria sua finalidade: o ensino e a pesquisa.

Uma série de outros tipos de papeis do mercado financeiro podem se agregar, então, a tal investimento. Tendo muitos alunos, a faculdade pode deslocar o pagamento das mensalidades para um banco que, abocanhando aquele volume depositado todo mês, de um lado concede crédito para a empresa depositante, de outro aumenta a capacidade de empréstimo para todos os seus clientes, e de quebra vende outros papeis que possam render juros, baseado direta ou indiretamente naquele volume de depósito. Se já não bastasse isso, a própria faculdade pode, prevendo uma crise, vender os seus ganhos antecipadamente para especuladores, que tentarão pagar o empresário ou acionistas da faculdade um valor menor e esperar para ver como se saem na crise real, se conseguem ou não receber dos inadimplentes. A depender da crise, podem ganhar. Esses papeis podem ser repassados a outro especulador, indefinidamente! Mil e uma situações se acumulam aí no âmbito dos negócios que fazem o capital crescer. Nenhum deles segue algum vínculo com o que se oferece de real, em termos de material humano, à sociedade. A qualidade da mercadoria real (alunos com conhecimento e patentes de pesquisas) em nada influencia a disposição da empresa no novo mercado, o mercado das finanças (os papéis gerados pela empresa no sistema de finanças). Eis aí, em termos maximamente resumidos e de modo didático, o capitalismo financeiro funcionando. Pode-se usar outro tipo de empresa, de sapatos ou comida etc. O esquema é o mesmo.

Esses mecanismos financeiros podem gerar crises impressionantes, especialmente no mundo atual, com globalização potencializada pela Internet, que faz a maior parte das pessoas do globo funcionar ao mesmo tempo. A célebre crise dos subprimes 2007/08 é o exemplo mais recente. De modo breve, tudo se passou da maneira como está abaixo.

No final dos anos noventa os bancos americanos passaram a facilitar o crédito para pessoas com poucos recursos. Não se pedia nada como garantia: nenhum grande patrimônio e nem mesmo renda. Até desempregados vieram a ter seus empréstimos aprovados. A única coisa pedida como garantia para o cliente era a sua casa. Era um tipo de crédito mais aberto, predisposto a “pegar todo mundo”. Nunca se emprestou tanto!  Esse tipo de crédito era conhecido como “subprime” (de segunda linha).

O volume de financiamentos desse tipo era gigantesco. Claro que os bancos sabiam bem que uma parte desse pessoal poderia vir a dar um calote. Mas o interesse bancário não era o de ajudar as pessoas pobres, evidentemente. Eles tinham outros planos. Eles fizeram pacotes de investimento para serem vendidos ao redor do mundo, e tais pacotes continham tais dívidas de alto risco, mas, também, dívidas de clientes com um histórico excelente, de gente que sempre honrou seus compromissos. Essa mistura era proposital, feita de má intenção para enganar mesmo o comprador do pacote. Os investidores (principalmente europeus) despejaram dinheiro nisso, comprando tais CDOs (Collateralized Debt Obligation). Os bancos engordaram. Quando os devedores pagassem os bancos, os investidores receberiam a dívida e ainda ganhariam juros bem altos. Esses juros realmente tornaram tais investimentos tentadores!

As agências internacionais de classificação de risco deram aval para tudo isso, afirmando que eram investimentos de boa qualidade. Uma operação assim sempre foi corriqueira, e todo investidor compra pacotes sem saber o que há de fato dentro, e então confia nas agências de classificação. Todavia, os devedores de histórico menos nobre, que davam base para a maioria do que estava no interior do pacote, não pagaram as suas dívidas. A maior parte dos bancos americanos e europeus, inclusive outros, estavam de posse de tais CDOs. E eis que veio, em efeito dominó, uma quebradeira de bancos, inclusive alguns gigantes. O mercado financeiro virou de ponta cabeça. Para evitar uma crise maior, como a pulverização dos bancos, os governos de vários países atingidos injetaram muito dinheiro em seus sistemas bancários. Deu-se a recessão no mundo todo, a falência de empresas e o desemprego campeou nos quatro cantos do globo terrestre.  Os Estados Unidos demoraram mais de dez anos para sair dessa crise. Outros países também entraram por crises prolongadas. O Brasil não deixou de sentir a crise.

Os teóricos que avaliam que hoje vivemos sob um novo capitalismo, o chamado capitalismo cognitivo ou capitalismo biocognitivo, tomam todo esse movimento de preponderância das finanças como um fenômeno interior de uma mudança mais profunda. Eles entendem que o mundo em que estamos é fruto de alterações na forma de trabalho, na produção de serviços, na ampliação do trabalho imaterial, tudo o que foi gestado no próprio capitalismo industrial fordista. Pessoalmente, tendo a acrescentar a tais análises a ideia de que Maio de 68 foi o cume dessas transformações que, enfim, se reorganizaram em forma de pedidos de mudança comportamental e organizacional das instituições sociais e políticas.

Bem, supondo que podemos colocar na jogada a narrativa dos teóricos do capitalismo cognitivo ou biocognitivo, o que segue é uma tentativa de descrição de nossos dias atuais. O complemento dessa descrição, em termos de transformações de ideias e de criação de narrativas filosóficas a respeito das novas subjetividades possíveis, está no livro Narrativas contemporâneas.

Voltemos então à sociedade industrial.

Foi nela que que o capitalismo do século XX jogou a humanidade para um patamar diferente daquele do tempo de Marx. Mas foi Marx, justamente, que com incrível capacidade de visão de futuro, preconizou os melhores conceitos para entendermos esse tempo de transição do industrialismo fordista para nossa era. O conceito chave aí está nos Grundrisse, a borrador que ele escreveu para dali tirar o livro O capital. Trata-se do General Intelect ou saber difuso na sociedade em determinada época. Essa inteligência difusa tornou-se durante o século XX mais homogênea, ampliada e de qualidade incrivelmente superior ao que se tinha no início do capitalismo. Como isso se fez?

A universalização da escola pública em associação à diminuição da jornada de trabalho, bem como o cuidado da higiene das mães e crianças na maior parte dos países industrializados, certamente teve um papel central na formação do General Intelect.

O trabalho do regime fordista era, de fato, o trabalho alienado. Quanto menos se soubesse, melhor. Os operários queriam horas para escapar dele, ainda que tal trabalho pouco interessante fosse o sustento de todos. Os operários não precisaram pedir muito para se livrarem desse fardo. A indústria mesma se encarregou disso. Ela se maquinizou. Manteve a esteira, mas tirou Carlitos. Fez a máquina se acoplar à máquina. Depois, fez os computadores dirigirem cada máquina. Dispensou milhares de trabalhadores. Robotizou-se e deixou para a sociedade em geral todos os trabalhadores. Era o que tinha de fazer: passar da mais valia absoluta para a mais valia relativa e levar isso ao limite. A sociedade transformou-se autenticamente no local do trabalho. Criamos então a vida atual: a cidade ou a sociedade como fábrica social. O mundo das empresas. Mas também o mundo do indivíduo-empresa. Com isso, em cada local os setores de serviços cresceram e o trabalho imaterial passou a predominar sobre o trabalho material. É na sociedade que há a acumulação do capital, segundo o mercado financeiro segundo o mercado das empresas de serviços de todo tipo – ora mais ou menos intelectualizados. O invólucro das finanças dá o tom: no mercado vende-se dinheiro e não se entrega, só se entrega os juros. No mercado de serviços entrega-se só o uso dos softwares, o uso do produto de patentes, as plataformas virtuais. O mundo para os mortais comuns é o mundo do download, o mundo para os mortais que acham que são os produtores é o mundo do upload. Do entregador de pizza ao entregado de serviços médicos, vinga a uberizaçao. Mas também é uberizado o cientista. Na verdade, não há separação entre os que fazem upload e download. É como alguém já disse certa vez, não temos consumidores e produtores, mas “prossumidores”.

O trabalho imaterial predominante, só possível por conta do General Intelect, é trabalho e consumo ao mesmo tempo, pois feito coletivamente em rede. Forma uma espécie de subjetividade maquínica, disseram filósofos franceses. Trata-se do homem em fusão com o que é maquinal. É trabalho autenticamente social. Ninguém faz algo sem estar conectado com outros virtualmente e integrando no que está fazendo ideias alheias e dado alheios, e isso segundo graus de exigência de mais ou menos intelectualidade. A síntese dessa situação é bem posta pelo economista italiano Carlo Vercellone: “A globalização financeira pode ser interpretada como o intento do capital de se tornar autônomo no seu ciclo de valoração em relação a um processo de trabalho que não mais subsume” (Capitalismo cognitivo. Buenos Aires: Prometeo, 2011, pag. 65).

Outro italiano, o filósofo Toni Negri (em associação com Michael Hardt), vê esse movimento segundo uma frase bastante significativa: trata-se da união da automação da fábrica com a digitalização da sociedade. (Hard & Negri. Assembly. São Paulo: Politeia,2018,  p.  152). Mas, tudo isso se fez porque a fábrica não era mais o lugar do lucro segundo a voracidade de crescimento do capital. Assim, “a fim de restabelecer margens de lucro que não podiam mais ser extraídas das fábricas, o capital teve de colocar o terreno social para trabalhar, e o modo de produção teve de ser ainda mais firmemente entrelaçado às formas de vida” – nesse caso, então, temos não só capitalismo cognitivo, mas capitalismo biocognitivo.

É subsumindo a própria vida que o capital, agora, cria processos de extração da mais valia. Trata-se de uma mais valia social, digamos assim. Gerada pelo trabalho contínuo que a própria vida social impõe e gerada pela produção proposital de escassez que o capital insiste em querer fazer vigente: o dinheiro que não se empresta e o software ou a patente da vacina que não se cede de modo algum.

A mais valia relativa tirou o que pode tirar da fábrica ao maquinizá-la, mas o capital queria mais. Ora, ali na fábrica, sem o homem, o processo de valoração estava fadado a ficar estancado. Então, o capital foi para a sociedade. Além disso, não poderia deixar de ir, a fim de criar empregos e dar salários para os que foram despedidos das fábricas, englobando aí gerações. Caso contrário, quem compraria o que ainda se faz nas fábricas? O setor de crédito pessoal se desenvolveu muito nesse caso, criando as dívidas pessoais de todo tipo, a cada mês.

Os que fazem objeções a essa abordagem, por exemplo, dizendo que por mais que se produzam espetáculos, que são imateriais, dependemos de construir os palcos, que são materiais – e então todo o trabalho capitalista continua o mesmo, não entenderam que o problema não é a construção de coisas materiais. É claro que o mundo físico continua existindo! Ninguém perdeu seu corpo! Uma Olimpíada tem vários espetáculos e construções imensas para tal. Todavia, o material vem da fábrica mecanizada, e os pedreiros, construtores e arquitetos, em que pese a grandeza do setor de construção urbana, não deixam de serem prestadores de serviços e não operários fabris. Mesmo o pedreiro atual deve seu emprego ao General Intelect. Ele não mexe mais a massa. Ele é quem coloca certas paredes no prumo. As variações de intelectualização do trabalho imaterial devem ser levadas em conta. Esse homem é tido como “capital humano”, em uma acepção tipicamente empresarial e vigente nas teorias neoliberais de administração. Na nossa terminologia, trata-se do homem do trabalho precarizado em termos de direitos, mais ainda extenuado pelo ritmo psicológico e pelo tempo de trabalho. O preço que se pagou para escapar do trabalho alienado foi o de entrar em um tipo superior de alienação, mesmo sendo agora portador de um saber que faz parte do saber difuso.

Mas o capital não visa apenas crescer. Ele visa, para crescer, jamais deixar o trabalho se autonomizar a ponto de vê-lo de todo emancipado. Desse modo, ele tenta de toda maneira deixar o trabalhador cativo. O processo de uberização, de precarização do trabalho, faz a autonomia do trabalho, enquanto trabalho imaterial, não voar muito. As privatizações de serviços essenciais para que o trabalhador continue trabalhando dentro das necessidades que agora são a produção do homem pelo homem, são então uma peça-chave de todo esse novo tipo de capitalismo.

Privatização do ensino superior ou controle privado do ensino superior público, é algo que o capital não pode dispensar. Trabalhar como consumidor e produtor ao mesmo tempo, ser um médico que trabalha 24 horas em uma plataforma de tele medicina é possível de modo otimizado se a iniciativa privada remodela a escola de medicina para esse fim. Então, a privatização ou a introdução de um modus operandi privatista no público se faz necessário. Se isso piora o ensino e se isso é incompatível com a própria mercadoria imaterial produzida, como Marx insinuou às vezes, é uma discussão dos políticos que querem acreditar que aí está a contradição que pode favorecer a luta anticapitalista atual.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo



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