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Freud e os percalços da siririca

No imaginário popular atual Freud é um incentivador de práticas sexuais que podem atuar no campo da higiene. As revistas comuns se dedicam a falar em “vida saudável”, e junto disso discorrem sobre como ter orgasmos de todo tipo para que a “saúde do corpo e da mente” se perpetue. Aqui e ali, Freud é invocado nessas reportagens.

Mas Freud jamais disse que orgasmo cura alguma coisa. Freud disse justamente o contrário. Ele ridicularizou uma prática médica de seu tempo (a Era Vitoriana), que recomendava Sexo como forma de cura da famosa “histeria feminina”, que na época era um nome para todo tipo de sintoma que pudesse incomodar uma mulher. Aliás, sabemos bem, essa recomendação médica ia além de dizer ao maridos que fizessem sexo regularmente. Os médicos, eles mesmos, tratavam de masturbar as mulheres em seus consultórios, enquanto os maridos, do lado de fora, ficavam a ouvir os gemidos. Não havia ereção por parte de médicos e maridos. A atividade trazia o tédio, e era cansativa, de modo que o próprio vibrador foi inventado para descansar os médicos, extenuados de tanto manipular mulheres que às vezes demoravam para se acalmar!

O orgasmo feminino não estava na ordem do que excitava homens – ou mulheres. Nem se acreditava muito na sua existência. O que ocorria, para os médicos, era um fenômeno de relaxamento uterino, que eles chamavam de “paroxismo”. O corpo humano tinha muito mais de mecânico que tem hoje para nós. As próprias práticas de fisioterapia tinham pouco a ver com exercícios, e os aparatos mecânicos é que realmente contavam para os profissionais de “reabilitação corporal”.

O que Freud fez em relação ao sexo não foi explicitá-lo, mas interiorizá-lo. Freud trouxe de volta a libido como alguma coisa que Santo Agostinho sabia muito bem que era uma força interior. Freud psicologizou o sexo ou, digamos assim, re-psicologizou o sexo, trazendo-o para novo patamar de entendimento e um novo elemento para se entender as forças psíquicas. Freud trouxe a psicanálise – uma intervenção da linguagem em redes de memória formada por linguagem – para assim desfazer nódoas passadas, dissolver problemas, e desse modo tirar mulheres de doenças que, até então, não raro recebiam o nome de “histeria”. Freud deu um passo a mais na história da subjetividade, que é uma história de internalização de forças. Deuses que vão para o interior dos homens; forças mecânicas que são interpretadas como psicológicas. Esse é o rumo do que chamamos de modernidade.

É claro que todos nós sabemos, principalmente hoje, que masturbação relaxa, que sexo deixa as pessoas mais predispostas umas com as outras etc. Sabemos também que o orgasmo feminino, quando visto e ouvido, é uma das coisas mais convidativas à prática sexual, e não só de homens. Não estamos mais na Era Vitoriana, claro. Mas esse saber banal vem para o nosso imaginário não só de nossa própria empiria, mas dessa prática anterior, médica, e asséptica, contra a qual Freud se insurgiu. Não vem do Mundo Libidinoso de Agostinho e de Freud. O mundo libidinoso de Agostinho e Freud é um mundo da alma, ou como falamos hoje em dia, algo “do mental”. Ou como alguns outros falam, segundo o movimento histórico de recorporalização: algo “do cérebro”, a tal “química”.

Como tudo nesse nosso mundo leve atual (Sloterdijk), também o sexo vai para o campo do divertimento, e sai do consultório e do campo patológico. Se ainda chamamos o médico para falar de sexo, ou se elegemos para conselhos gente com o nome de sexólogo, ou se escolhemos o psicanalista, tudo isso é apenas uma grande máscara para o fato de que saímos da vagina como o campo da doença para irmos para a vagina enquanto playground. É ridículo dizer que esse playground vai desaparecer. Ele é barato e acessível com facilidade. Inventar algo mais fácil de acompanhar a leveza moderna é difícil.

Sexo não é o divertimento do pobre, pois o pobre trabalha muito e o sexo é da geografia do ócio. Sexo é o divertimento que pode se universalizar como aquilo que a nossa Era de leveza pede, algo que diverte sem grandes compromissos, ou ao menos promete isso.  E isso é ajudado por conta de termos transformado o sexo em algo portátil. Os órgão sexuais já eram portáteis, agora o funcionamento deles também o é: o Viagra e o celular com nudes cabem no bolso. Todavia, talvez exatamente pela facilidade com que a ele ganhamos acesso e até mesmo pelo seu caráter desonerado atual, o sexo tem interessado pouco os jovens de classe média.

A juventude atual de classe média é dessexualizada. Até aí, nenhum problema. A coisa se complica quando essa juventude dessexualizada normalmente acaba como massa de manobra para os que foram dessexualizados por conta de patologias, as anorgasmias várias, e a frigidez absoluta. Os dessexualizados desse tipo tendem a cultivar uma raiva inaudita da felicidade sexual alheia. Então, se insurgem contra o sexo, o desejo e tudo o mais que podemos fazer com o corpo no sentido do amor. Para tais pessoas infelizes tudo é “sexismo”. É a forma que elas têm de tentar fazer com que a alusão ao sexo, que tanto as incomoda, desaparece da face da Terra. É gente bem distante do mundo libidinoso de Santo Agostinho e de Freud. Antes essa gente vivia na direita política. Hoje, ocupam certos nichos na esquerda. É uma espécie de neoestalinismo, uma forma de moralismo barato que, por desvio, se incrustou na esquerda e causa enorme prejuízo para o espírito libertário. Essa gente odeia a siririca.

Paulo Ghiraldelli, 63, filósofo. 15/11/2020, publicado originalmente em 13/05/2018

Gravura: Propaganda da massagem terapêutica.



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