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O racismo tem cura na sociedade liberal de Rawls

O trineto do imperador Dom Pedro II, Dom Bertrand de Orleans e Bragança, foi convidado para um “live” em uma fundação ligada ao Itamaraty, comandado (e manchado) pelo olavete tresloucado Araújo. Nessa “live” ele chocou os brasileiros com a afirmação de que não existem diferenças raciais no país. E emendou na sequência: “enquanto certos países têm um problema racial muito violento, aqui nós não temos”. “Estão procurando criar esse problema racial, mas não conseguem. Aqui, todos nos damos bem. Aqui no Brasil, todos nós vivemos bem” (Folha de S. Paulo, 16/06).
Por conta do bolsonarismo vigente, a propaganda de forças reacionárias – de pouca efetividade mas de muito barulho – sobre os benefícios do regime imperial no Brasil (tendo como Chanceler o próprio Bolsonaro) se acoplam ao liberalismo de um Paulo Guedes sem qualquer pudor.  Na esteira desse pensamento, essa forças se recusam em entender que o liberalismo poderia, se levado adiante, não dar margem apenas para o darwinismo social, como sempre é o caso. O liberalismo pode, muito bem, ter uma faceta mais condizente com a democracia social. Pode, inclusive, ser compatível com cotas sociais.
Sob o argumento liberal de que as lei deve ser igual para todos, gente como Dom Bertrand, Karnal, Pondé, Gabriela Prioli, Caio Coppolla, Amoedo e qualquer membro do PSDB em comum acordo com bolsonaristas (e Anitta, depois das aulas da Prioli?) pode condenar políticas compensatórias de estilo americano, o que no Brasil se fez presente segundo o nome de “cotas étnicas”. Todavia, é fácil notar que há liberalismos e liberalismos.
Na verdade, a política de cotas como um todo está sob uma visão totalmente possível de ser conciliável com o liberalismo. Basta para tal imaginarmos como funciona a justiça de Rawls em uma Sociedade liberal.
John Rawls propõe que cada um de nós se coloque no lugar da figura do Legislador, aquele que está de posse do direito de construir um ordenamento jurídico-social para uma determinada sociedade. Esse legislador deve propor uma carta de direitos e deveres para uma sociedade que, a partir daí, será uma sociedade justa. Só que, na ausência de deuses e de reis-filósofos, esse legislador não é outra coisa que um mortal comum que, enfim, após elaborar a carta, terá de se dirigir ao seu lugar naquela mesma sociedade que regrou. Para que ele faça o serviço de modo bem feito, Rawls pede que ele, o que vai legislar em favor de uma sociedade justa, ponha no rosto “o véu da ignorância”. O que é isso? Simples: uma venda nos olhos de modo que ele, o legislador, não saiba em qual lugar ele próprio irá cair na sociedade justa que criará. Ora, por razões racionais (e pragmáticas), esse legislador irá dizer que em tal sociedade todos são livres e iguais em nascimento, e que o esquema completo de liberdades para todos deverá poder ser usufruído plenamente por cada um. Não haverá o cultivo da injustiça social, pois, enfim, todas as instituições sociais de promoção humana atuantes no sentido da garantia da igualdade de oportunidades serão igualmente garantidas a todos. E dirá mais: no desdobrar da história dessa sociedade, a diferenciação econômica e social satisfatória poderá ser estabelecida somente se beneficiar todos, principalmente e prioritariamente os grupos menos favorecidos, de modo que a igualdade de oportunidades só venha a melhorar, não a piorar.
Terminado o serviço, tirada a venda dos olhos do legislador, este poderá então adentrar a sociedade com a certeza de que ele legislou para todos (e para si mesmo) sem nenhum perigo para ele próprio, pois, se o seu lugar é aquele dos que, porventura, estão demandando mais atenção por conta de vicissitudes que criam diferenças, ainda assim ele garantiu a estes a igualdade de oportunidades em um sentido pleno. (1)
Ora, isso se adéqua perfeitamente à situação das políticas de inclusão: diferenças são bem vindas, como em qualquer sociedade liberal, o que não pode existir é a injustiça gerada em nome da igualdade perante a lei como exclusiva questão de direito; ou seja, a situação em que nunca se pode aplicar a igualdade perante a lei como questão de fato porque a igualdade de oportunidades é esquecida, negligenciada, diminuída etc. Assim, para que todos tenham igualdade de oportunidades diante de todos os bens sociais, deve-se colocar a escola pública de boa qualidade para todas as crianças – pois junto com a liberdade de expressão e pensamento e outros direitos que garantem a igualdade, a escola é um dos elementos importantíssimos dos bens sociais que devem ser igualmente bem distribuídos em uma sociedade justa. Mas, se é um quase consenso que as crianças negras, desde o primeiro ano escolar, são vistas pelos colegas, por elas mesmas e pelos professores como quem deverá parar de estudar em determinado momento, pois, enfim, é estranho um negro na universidade, então a igualdade de oportunidades já foi para o espaço.
Ora, então, o legislador de Rawls, se quer fazer o trabalho bem feito, tem de entrar em miúdos para efetivamente garantir diferenciações que venham a satisfazer os que têm menos vantagens. Ele tem de promover uma legislação que, por sua vez, dê margem para mais legislação, ou seja, um plus capaz de quebrar com o pensamento que faz a ideia do negro na universidade parecer uma quimera.
É exatamente isso que ocorre: uma sociedade que não tem negros em alguns lugares não vai, por heroísmo de determinadas pessoas no cotidiano, mudar o pensamento coletivo, tornando-o crente que, no primeiro ano de escola, todos terão caminho natural para a universidade. Até mesmo os que não têm preconceito ou, ao menos, não tem no sentido de intencionalmente quererem diminuir alguém, pensam sob o tacão do preconceito. O professor, o aluno e mesmo o aluno negro podem dizer – e dizem – a quatro paredes: como vou acreditar que o negro chega à universidade se olho para a universidade e não vejo nenhum negro lá? Esse pensamento é o que corrói toda a base formal da igualdade. É difícil para uma pessoa honesta e de mente aberta, que vive no Brasil popular hoje, dizer que é uma mentira que isso passe pela cabeça da maioria de nós. Assim, para que legislador de Rawls cumpra sua tarefa, ele tem de ser um legislador que, entre tudo que legisla, legisla também a favor das cotas étnicas. Ou melhor, legisla antes de tudo favorecendo cotas étnicas – e isso independentemente da questão de se a escola pública é boa ou ruim.
Com as cotas, após alguns anos, surgirá uma classe média negra bem escolarizada e, aí sim, todos os negros passarão ter o benefício – indireto – de tal política. Não serão olhados como estranhos, dependendo do lugar que estão, e isso sim, finalmente, os colocará em posição de igualdade a ponto da “igualdade perante a lei” ser efetivamente lei. Foi isso que ocorreu nos Estados Unidos, ainda que lá, quando a política de “ação afirmativa” tenha começado, já existisse uma classe média negra bem escolarizada. O racismo não desapareceu da sociedade americana. A pobreza dos negros é visível. Mas tudo foi muito pior antes das cotas. No Brasil, a cota étnica pode trazer uma aceleração fantástica na diminuição do racismo e do preconceito racial.
A cota deve, no limite, fazer com que cada professor, no primeiro ano de escola, diga para o aluno negro que está indo mal: você consegue, e veja como todos que passaram por aqui chegam à universidade. Num prazo médio, essa verdade se imporá, e o preconceito que fomenta a desigualdade de oportunidades no ponto de partida se tornará bem menor. É assim que se faz.
© 2020 Paulo Ghiraldelli 63, filósofo.
(1) Em termos menos ensaísticos, eis as duas leis da Teoria da Justiça de Rawls: A idéia de  justiça como equidade pode ser posta em dois princípios:
Primeiro Princípio: cada pessoa tem o mesmo irrevogável direito a completo adequado esquema de liberdades básicas, que é compatível com os mesmos esquemas de liberdades para todos.
Segundo Princípio: Desigualdades sociais e econômicas são satisfatórias em duas condições: a) Elas devem estar ligadas a empregos e posições abertos a todos sob condições de justa igualdade de oportunidades; b) Elas devem beneficiar mais os membros menos favorecidos da sociedade. (Justice as Fairness, 42-43)


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