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A mulher fedorenta

Sabe-se bem, o Kama Sutra não é um manual de posições sexuais, ainda que assim seja publicado e republicado pelo mundo a fora.  Mas, seu original é disponível em português e mostra como o livro se põe como uma espécie de filosofia do bem viver em relação ao amor. As sugestões do livro são interessantes e, é claro, só podem realmente ser entendidas por quem conhece a cultura do Oriente. Ora, nós, os ocidentais, penamos muito para conseguir pessoas com essa expertise. Todavia, algumas coisas desse livro escapam até mesmo aos experts. O livro traz uma lista um tanto esquisita de “mulheres que não devem ser desfrutadas” (1). Ei-la:

A leprosa

A lunática

A expulsa da sua casta

A que revela segredos

A que expressa publicamente o desejo de relações sexuais

A muito branca

A muito preta

A que cheira mal

A que é parente próxima

A que é amiga

A que leva vida de ascetismo

A esposa de um conhecido, de um amigo, de um brâmane culto, e a do rei.

Não vejo muita dificuldade de entender a lista. Mas, “a que cheira mal” realmente é intrigante que esteja na lista. Qual o problema com uma mulher fedorenta? Uma mulher que cheira mal, principalmente se o seu fedor é característico, não é justamente a que cheira bem? O fedor de uma mulher não excita? Mas, se o caso é de um fedor insuportável para qualquer nariz, não é a Índia o lugar tradicionalmente conhecido pela produção dos melhores perfumes e, portanto, o canto do mundo em que o fedor nem deveria importar? A arte de produção de perfumes e de uso obrigatório destes é alguma coisa da sabedoria milenar dos indianos. Então, por que a mulher “que cheira mal” deve ser evitada para o desfrute, segundo uma regra que parece tomar o problema como insolúvel?

Bem, podemos imaginar que a mulher que “cheira mal” é uma mulher que realmente cheira mal a ponto de não existir o que se possa fazer para eliminar seu cheiro. Mas, uma tal hipótese é difícil de ser levada a sério. Existiria uma mulher imune a qualquer perfume? Ou o fedor, nesse caso, se refere a dentes cariados ou mau hálito vindo de partes mais profundas que a boca ou, ainda, alguma doença que provoque o mal cheiro generalizado? Trata-se, então, de uma podridão crônica! O “cheira mal” estaria apenas querendo dizer “mulher doente”. É isso?

Essa hipótese também não é boa. Pois, a Índia nunca foi de possuir uma medicina que não pudesse detectar algo que é doente e distinguir de algo que apenas cheira mal. Doente pode cheirar mal, mas “cheira mal” e “doente” não são intercambiáveis, não a ponto de se ter de tomar o “cheira mal”, numa lista meticulosa, como necessário de ser colocado para se evitar o termo “mulher doente”. Forçaríamos a interpretação se fôssemos por esse caminho.

A mulher que “cheira mal” parece ser algo para além de “mulher doente”. Aliás, devemos notar algo especial na lista. Não se trata de uma lista de mulheres que podem nos trazer meros dissabores. Não! A lista é peremptória. As mulheres da lista não devem ser desfrutadas. Não há aí nenhuma sugestão, há a norma, o dever.

Todos nós sabemos que o odor de uma mulher (como de qualquer pessoa) pode ser eliminado, ainda que, nos casos piores, só momentaneamente. Mas, momentaneamente, já é o suficiente para todos nós. Todavia, o Kama Sutra não dá uma alternativa sequer: a mulher que cheira mal não deve ser desfrutada. Nenhum atenuante aparece. A mulher que cheira mal, cheira mal e pronto – que fique de fora do comércio sexual.

É interessante notar essa questão do ponto de vista da metáfora ocidental que privilegia sempre os olhos como elementos próprios para a atividade de apreciar, nunca o nariz ou mesmo o ouvido ou o tato. Uma mulher bonita, que agrada aos olhos, no Ocidente, pode ser uma chata. Uma mulher bonita, que agrada aos olhos, no Ocidente, pode falar bobagem. Sendo bonita, pode, inclusive, feder! Uma mulher bonita que fede horrores ganha alguns sabonetes, perfumes ou, no caso mais radical, procura um médico. Mas ela é bonita – eis o que conta! Ao fedor, dá-se um jeito. O critério é o das luzes, do Iluminismo, o que passa pelo crivo dos olhos. No Kama Sutra, os olhos também são crivo, mas não sozinhos ou como imperadores absolutistas. A lista aponta vários problemas da mulher que não são reconhecidos exclusivamente pelos olhos. Aliás, só em dois casos os olhos comandam: a mulher “muito branca” e a “muito preta”. Agora, o olfato aparece estranhamente solitário e imperativo, de um modo que no Ocidente não apareceria: a mulher fedorenta não deve ser objeto de sexo.

Deveríamos pensar mais sobre como o Ocidente e o Oriente criaram suas metáforas. Entenderíamos mais não só do amor, mas da nossa vida em geral.

© 2010 Paulo Ghiraldelli Jr, filósofo,

(1) Kama Sutra. Rio de Janeiro. Zahar, 2002.



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