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A fé é do corpo

Pastores acreditam que a fé vem do que há de menos corpóreo em nós. Neurocientistas têm tentado mostrar que a fé aparece em nós exclusivamente por causa de nosso Corpo, que tanto quanto nossos sentimentos amorosos, os sentimentos religiosos estão em função de nossa química interna. Mas há outra dimensão interpretativa para a nossa fé, que também dá atenção ao corpo. Essa dimensão nada tem a ver com pastores e neurocientistas, ela é criada pela filosofia.
Práticas e rituais são a fé, e não manifestação da fé. Práticas e rituais podem começar por imitações de movimentos de objetos da natureza que porventura se queira controlar. Podem, antes mesmo, aparecer em termos mais selvagens, apenas como expressões miméticas pouco ou nada envolvidas com qualquer tipo de consciência intencional clara. Após essas práticas ocorrerem, aí então é que, historicamente, buscamos saber das narrativas capazes de justificá-las, uma vez que já não sabemos mais de onde vieram e porque as executamos. Caso não tenhamos essas narrativas já inventadas para, então, sacarmos quando de eventuais perguntas sobre nós mesmos, nós as inventamos. Esses rituais que, digamos assim, seguram tais narrativas são, fundamentalmente, corporais.
Vindo do âmbito natural para o cultural, esses rituais se instituem em cada grupo étnico. Então, quando crianças, entramos em grupos de nossa comunidade que executam tais práticas e que, não raro, em algum momento de sua história tiveram de criar uma narrativa para ligá-las ao que, até então, chamavam de fé e não de práticas corporais. Pertencentes a esses grupos, colocamos nosso corpo para ser adestrado coletivamente. Uma vez educados fisicamente, somos educados cultural e religiosamente. Assim, mais tarde, ao começamos o movimento, nossa fé aparece, pois ela é o ritual aprendido.
Os estudiosos do assunto, os bons scholars helenistas, têm insistido que uma grande parte da mitologia grega é posterior aos rituais. Os gregos trouxeram os rituais de tempos imemoriáveis e, quando começaram a se preocupar em dar alguma justificativa a respeito deles, passaram a escrever sobre si mesmos – criaram a mitologia. Nunca conseguiram casar a prática dos rituais com a mitologia criada de modo a criarem um conjunto muito harmônico, mas tentaram isso a todo custo. Todavia, não criaram textos dogmáticos, igrejas, grupos sacerdotais unificados, regras religiosas escritas e instituídas. Para eles, repetir rituais era mais do que adendo religioso, era a própria religião e, no caso, também exercício de cidadania.
Não à toa, no campo da cultura greco-romana, há várias histórias sobre os mesmos deuses, apontando árvores genealógicas distintas e até mesmo mitos bem diferentes sobre tais deuses e heróis. Às vezes os mitos queriam narrar algo da natureza, os rituais da própria natureza – como as mudanças de estações, por exemplo. Isso até estava mais próximo da origem desses rituais. Mas às vezes os rituais eram humanos e, tão arraigados estavam nos corpos que não podiam ser evitados, e não faziam ninguém se lembrar de qualquer coisa ligada à natureza – fazia-se necessário, ao explicá-los, recorrer a histórias que pudessem falar de dramas humanos, ainda que representados por deuses e deusas.
Gerações e gerações transmitiram o que seria a religião por meio do rito, sem perder nada no caminho. Mas, em algum momento, quando o rito apareceu estranho para uma nova geração, justamente por alguma falha educacional, então uma narrativa foi exigida. O que se poderia fazer é o que foi feito; criaram-se histórias capazes de dar um adorno explicativo para o ritual que, antes, nada solicitava – nada melhor para isso que algum mito sobre amor, guerra, traição e honra. Os Jogos Olímpicos podem servir de exemplo. Sua prática e ritual devem ter sobrevivido muito tempo antes de alguém começar a contar sobre como os deuses participavam ou não daquilo tudo.
Essas práticas pagãs conviveram muitos séculos com as práticas nascentes do cristianismo no caldeirão de cultura gerado pelo Império Romano. Houve uma fusão da educação corporal vinda de práticas judaico-cristãs (e outras) com as práticas do mundo helênico. A religião cristã tinha antes história que prática, mas logo que caiu no colo greco-romano, percebeu a força da fé como força de práticas corporais e, então, buscou ampliar seus ritos, observando e aproveitando tudo dos romanos.
Os romanos tinham altares para os inúmeros deuses e mesmo demiurgos gregos que eles, sabiamente, latinizaram e popularizaram. E foi só os cristãos terem mártires que, então, em todo o Império Romano tornado oficialmente cristão, onde havia um altar pagão este foi modificado e abrigou um santo cristão. Mas o que fazer diante do altar?
A prática de Jesus era um pouco seca. Ele ficava sentado na montanha, orando. Ora, isso não é coisa que pudesse conquistar um povo oriundo do caldeirão de bárbaros e latinos. Bárbaros e latinos eram dançantes. Os helenos eram dançantes. Os cristãos precisavam instaurar práticas corporais diante dos altares, ou estes não atrairiam muita gente. Ora, nada foi feito além do que já se fazia, e eis que os santos receberam a fé por movimentos corporais pagãos incrustados, agora, em indivíduos que estavam começando a aprender a serem cristãos.
Danças foram substituídas por cantos, procissões, genuflexões, sinais da cruz no peito e outros movimentos. Mais tarde, com a Igreja, a própria “missa” passou a compor um elenco de movimentos estudados e ensinados. Algo da instituição do teatro em seu casamento com a prática da corporal física de jogos, englobadas sob a palavra “ritual”, nada além de um quase sinônimo da palavra “fé”.
A fé precisa do corpo porque é mera fantasmagoria sem ele. Não há sentimento religioso que consiga sobreviver sem o engajamento do corpo. E isso em um sentido autenticamente físico, ou melhor, sinestésico. Quando um cristão faz o sinal da cruz no peito, ele o faz automaticamente, mas naquele momento toda a cinestesia de seu corpo o tenta avisar que deve parar e se dirigir ao seu mito particular, ao seu deus particular. Mesmo quando ele está apressado, a sinestesia faz essa chamada. Ela é o sino e o sinal da fé. O sinal da cruz com as mãos não é um sinal para a cruz, é um sinal do corpo para o corpo, para que ele, por esta cinestesia, coloque todos os neurônios em função do sentimento religioso que desperta. Essa cinestesia desperta tudo que tem de despertar. Ela é a fé.
Quem vê de fora o cristão gesticulando, toma o sinal da cruz como tendo sido motivado por uma decisão racional acoplada ao sentimento religioso, mas não é isso que ocorre. O que ocorre é que o movimento vem antes e, então, produz todo o resto.  Caso o cristão tenha tempo, então, no momento em que faz o sinal da cruz, o sentimento religioso aparece e o conduz ao altar mais próximo, em relação ao qual o sinal da cruz se fez. A fé individual nunca se desprende do mundo nada individual, natural e bruto em que nasceu.
A religião é fundamentalmente uma prática corporal. Mesmo no cristianismo, uma religião com narrativas associadas a regras escritas, igrejas, instituições e todo um aparato que busca mostrá-la como uma decisão de consciência, muito do que se faz depende do que os gregos viram que funcionava para eles. Antes o corpo como um todo entra em ação e, então, também como um sentimento que não se desliga do corpo, pois permanece como sensação, toma conta do indivíduo. Tudo isso começa com um mero sinal da cruz com as mãos.
Caso um dia alguém queira produzir um tratado sobre o fundamento do sentimento religioso ou da fé, deveria não escrever nada e só colocar figuras – corpos dançando, se ajoelhando, sofrendo, rindo e chorando, jogando bola ou pulando, lutando com leões ou simplesmente andando sobre as águas. Ou dispostos atlética e eroticamente em crucifixos.
©2010 Paulo Ghiraldelli Jr., filósofo


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