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As margens da possibilidade

À chegada ao Castelo de Eilean Donan, vejo-me imerso num mundo que parecia ter sido esculpido diretamente das páginas de um livro de contos medievais. Este castelo, situado numa pequena ilha misteriosa nas Highlands é um símbolo imponente do imaginário social medieval.
À medida que me aproximo das muralhas do castelo, as pedras antigas sussurram histórias de nobres e donzelas, de batalhas heróicas e tradições ancestrais. Sinto cavaleiros a defender a honra e a justiça e trovadores a entoar canções de amor. Quando entro, vejo salões com tapeçarias ricamente bordadas a retratar cenas de batalhas. Imagino nobres com roupas sumptuosas e jóias brilhantes e servos a manter viva a chama da lareira e a preparar banquetes dignos de reis.

Este cenário transporta-me para as minhas aulas de História Medieval. Numa Sala que era um relicário da história, com paredes de pedra gastas pelo tempo e uma atmosfera de solenidade e reverência, como se cada pedra guardasse os sussurros das eras passadas.

No centro da sala, um estrado de madeira envelhecida, gasta pelo uso constante, erguia-se como um altar de sabedoria. Era ali que o professor das aulas teóricas se posicionava com a sua presença imponente e a sua paixão ardente pela Idade Média. O estrado estava ligeiramente elevado, permitindo que a sua voz ecoasse por toda a sala, como se estivesse a compartilhar segredos do passado com cada um de nós.

À medida que o professor começava a compartilhar histórias de cavaleiros corajosos, damas encantadoras e intrigas palacianas, a sala de pedra parecia ganhar vida.
Essa sala antiga era mais do que um espaço de ensino; era um portal para a Idade Média, onde o passado e o presente entrelaçavam-se numa dança de aprendizagem e descoberta. Era um lugar onde a história ganhava vida e onde nós nos tornávamos viajantes do tempo, explorando os segredos e mistérios de uma era distante.

Chego a uma janela e olho para a outra margem deste lago misterioso. Ali desenrolava-se uma realidade cruel e esquecida. O povo que habitava as aldeias, sob a sombra do castelo, enfrentava uma existência que contrastava bruscamente com o esplendor da nobreza. As suas casas, modestas e humildes, eram construídas com madeira envelhecida e palha queimada pelo sol. As refeições eram frugais, a fome constante e o trabalho nos campos inclemente. Vidas tão distintas que floresciam em margens opostas.

De súbito recordo as palavras de Adalberão de Laon sobre a divisão da sociedade ou as de Chastellain (cronista dos duques de Borgonha) que descreve o povo como “mercadores e homens de trabalho (…) dificilmente é possível atribui-lhes grandes qualidades, visto que pertencem a uma classe servil que se deve curvar voluntariamente ao prazer dos senhores.”

Claro que são palavras que ignoram por exemplo mercadores influentes e outros seres em ascensão mas mesmo assim não deixam, como sabemos, de ser o reflexo do pensamento tripartido que alicerçou a Idade Média.

O guia diz, entre o inglês e o gaélico, que o castelo foi construído devido à necessidade de defesa contra os vikings. De imediato volto áquela sala de pedra e imagino o relato do meu professor:

“Era uma manhã sombria quando as primeiras sombras dos barcos vikings surgiram no horizonte cortando as águas revoltas que cercavam o Castelo de Eilean Donan. Os drakkars, esculpidos com dragões ferozes e ornamentados com escudos de guerra, pareciam emergir de um pesadelo ancestral. Os guerreiros nórdicos, de olhos ferozes e barbas trançadas, remavam com vigor implacável em direção à ilha.
O alarme ecoou pelo castelo, chamando a nobreza e o povo para a defesa das terras. Os nobres, vestidos com armaduras reluzentes e empunhando espadas afiadas, lideraram a resistência. As suas vozes ecoavam com comandos firmes enquanto organizavam as defesas do castelo.
Enquanto isso, os habitantes da outra margem, agricultores e artesãos, preparavam-se para a batalha com uma determinação feroz. Pegaram em foices, enxadas e outras armas improvisadas que puderam encontrar. As mulheres e crianças ajudaram a fortificar as defesas, empilhando pedras e erguendo barricadas.
À medida que os barcos vikings se aproximavam da fortaleza, os arqueiros, no topo das muralhas, lançavam flechas em direção aos invasores.
Os combates nas margens do castelo eram intensos. Nobres e camponeses lutavam lado a lado, defendendo a sua casa e as suas famílias com coragem indomável. As espadas encontravam escudos e o som do aço contra aço era ensurdecedor. A batalha rugia como um furacão, com bravura e ferocidade de ambos os lados (…).”
A narrativa do meu mestre certamente que duraria uma aula inteira pois iria voar do meio da batalha para outros mundos. Certamente que finalizaria o seu discurso com algumas palavras sábias de quem entende os segredos da união “Somente através de causas comuns”, diria com serenidade, “será possível encurtar a distância entre as duas margens”.

À medida que eu contemplava as águas que separavam a nobreza do povo naquela época medieval, compreendia que as diferenças sociais eram como um abismo intransponível. Mas de certa forma percebia que, apenas as causas comuns podiam construir pontes sobre esse abismo. É uma realidade que transcende o tempo e o espaço, uma lembrança de que, mesmo nas sociedades mais fragmentadas, a união em torno de causas comuns pode superar as distâncias e construir um caminho para um futuro melhor.

Fotografia e texto: Sérgio Moreira


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