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Mortes na tortura da Inquisição


Apologistas católicos costumam argumentar que as torturas da Inquisição não ofereciam nenhum tipo de risco à vida da vítima, por causa da presença do médico que supervisionava tudo. Paradoxalmente, esses mesmos apologistas afirmam que muita gente morria nas torturas do poder civil, desconsiderando o fato de que lá também havia a presença do médico. Ou seja, eles não conseguem formular uma argumentação simples sem entrar em contradição. Se a presença do médico impedia completamente que alguém morresse, então como afirmam que tanta gente morria na Tortura dos tribunais civis? Não deveriam, a não ser que os médicos da Inquisição fossem muito melhores do que os do poder civil – e não há nenhum indício que aponte nesta direção.

A verdade histórica é que a presença do médico, fosse no poder eclesiástico ou secular, podia contribuir até certo ponto para evitar um número muito grande de mortes, mas de forma nenhuma as impedia por completo. Por isso, tanto no poder civil quanto no inquisitorial, há vários casos documentados de pessoas morrendo em função das torturas, não obstante a figura do médico ali presente. Lembre-se que a Igreja a princípio não queria que ninguém morresse na tortura, porque precisava que aquelas pessoas se mantivessem vivas até serem queimadas na cerimônia oficial dos autos da fé. Morrer antes iria prejudicar o espetáculo.

Isso não significa, contudo, que os inquisidores tivessem qualquer respeito pela vida humana. A intenção era que não morresse, mas se morresse o problema não era tão sério. Toda a culpa era jogada nas costas da vítima assassinada, culpada pela sua própria morte por não ter confessado a “verdade”, e os inquisidores simplesmente lavavam as próprias mãos. Já vimos como a Inquisição tratava os loucos, que de certa forma servem de ilustração para o valor que a Igreja dava à vida humana. Relembremos:

A questão de se fingir de louco merece uma atenção especial. E se se tratasse, por acaso, de um louco de verdade? Para ficar com a consciência tranquila, tortura-se o louco, tanto o verdadeiro como o falso. Se não for louco, dificilmente poderá continuar a sua comédia sentindo dor. Se houver dúvidas, e se não se puder saber se se trata mesmo de um louco, de toda maneira, deve-se torturar, pois não há por que temer que o acusado morra durante a tortura.[1]

A primeira vez que eu li este texto pensei que ele fosse dizer o inverso do que disse depois. Quando ele fala sobre «ficar de consciência tranquila», imaginava que tivesse relação com a dignidade da vida humana. Ou seja, que por questão de consciência os loucos seriam poupados da tortura, porque seria desumano demais torturar um louco de verdade. Mas não. Era justamente o contrário. A «consciência tranquila» não tinha qualquer relação com um apreço pela vida humana, mas com, é claro, combater a heresia por todos os meios possíveis – até mesmo torturando um louco para que ele “confessasse”. A vida do louco não importava; arrancar a confissão, sim.

Essa dura constatação fica ainda mais evidente na continuação do texto, onde ele diz claramente que não há por que temer que o acusado morra na tortura. Ou seja: se morresse, dane-se. Não era problema deles. Não há por que temer essa “fatalidade”. Embora a intenção principal fosse o sofrimento e não a morte, a morte não era algo tão mal assim. Era tudo remediável; afinal, o “bem maior” estava em jogo: a preservação da fé católica. Zumbis fanáticos eram capazes de fazer o diabo por este propósito, o que inclui dar sua própria vida e tirar a dos outros. Era este o ideal das Cruzadas e da Inquisição.

O próprio Peña reconhece que “muitos réus ficam, depois das primeiras sessões de tortura, num tal estado de fragilidade e enfermidade, que devemos nos perguntar, sinceramente, se seriam capazes de suportar o restante”[2]. Isso, contudo, não os impedia de sofrer o «restante». Ele também denuncia que muitos réus morriam durante a tortura, ou “saem de lá com os membros fraturados, doentes para sempre”[3]. Era tudo para o bem da fé e da Igreja – essa mesma Igreja que é sempre “santa” independentemente de quantas pessoas torture ou mate.

Nicolau Eymerich justificava as mortes na tortura sob o pretexto de que aquelas pessoas estavam sob o efeito de bruxaria[4]. Toby Green comenta que “a atitude geral com relação ao prisioneiro se resumia na visão de Eymerich de que a morte na câmara de tortura era uma forma de feitiçaria desprezível destinada a frustrar o inquisidor”[5].

Em certa parte do manual, Eymerich menciona brevemente um casal de hereges. O homem se chamava Dolcino, e sua esposa era Margarida. Ambos foram queimados durante o pontificado de Clemente V (1305-1314)[6]. É um outro inquisidor, no entanto, que nos dá mais informações sobre como o casal morreu. Trata-se de Bernado Gui (1261-1331), quase tão famoso quanto Eymerich, que informou que “a tal Margarida foi cortada em pedaços diante dos olhos de Dolcino; este, por sua vez, também foi cortado em pedaços. Os ossos e os membros dos torturados foram atirados à fogueira, juntamente com alguns de seus seguidores”[7].

Isso mostra claramente que a Inquisição podia torturar até a morte, e com requintes de crueldade. Ser cortado em pedaços até a morte não se parece em nada com o espírito amável e tolerante da lenda branca da Inquisição, que os escritores católicos querem nos passar a todo e qualquer custo. Ricardo Palma revela que “frequentemente morriam réus na prisão, em decorrência da tortura, melancolia e maus-tratos – quando não se suicidavam. Induzia-os a esse ato de desespero a circunstância de a Inquisição adiar por longo tempo a execução da sentença”[8].

Casos individuais documentados de pessoas mortas em função da tortura da Inquisição existem aos montões. Green menciona o caso do sapateiro mouro Alonso de Salas, que, em 1590, morreu na câmara de torturas da Inquisição de Toledo[9]. Caso semelhante é o de Manuel Álvarez Prieto, aprisionado em Cartagena, em 1636. Ele foi levado para o cavalete, onde passou três horas e aguentou sete voltas da corda sem confessar nada. Seus braços estavam quebrados e tão torcidos que o cirurgião disse que corria perigo de vida. Morreu dois dias depois, e os inquisidores disseram que a culpa foi dele[10]. Como se não bastasse, “os inquisidores o declararam culpado e ordenaram que seus ossos fossem queimados, seus bens, confiscados, e os nomes de seus descendentes maculados para sempre”[11].

Palma registrou o caso de Mencia de Luna, que morreu durante as torturas, na segunda volta da roda[12]. Malucelli alega que não eram raros os casos de mulheres mortas ou estropiadas de forma irreversível em razão das sevícias sofridas”[13]. Muitas vezes a pessoa não morria, mas ficava com fraturas irreversíveis, que era obrigada a levar consigo pelo resto da vida. Nazario diz que “alguns réus, após as torturas e os padecimentos do cárcere, achavam-se em tal estado que nem em padiola podiam comparecer ao auto pelo perigo da sua vida”[14].

Tommaso Campanella, um místico dominicano preso em 1591, foi de tal modo torturado pela Inquisição que um amigo que o visitou em sua cela depois informou que “ele tinha as pernas todas feridas e as nádegas quase sem carne, arrancada pedaço a pedaço para extorquir-lhe uma confissão dos crimes de que fora acusado”[15]. O mais abominável de tudo, no entanto, é que para todos esses ferimentos graves e mortes causados pela tortura, a Igreja determinava que a culpa era da própria vítima, e poupava completamente os inquisidores de toda e qualquer responsabilidade. É como sofrer um estupro e ainda ser o culpado pelo estupro que sofreu.

Para entender a “lógica” da Inquisição, é preciso voltar ao capítulo anterior, onde vimos que o réu era considerado culpado a priori, ou seja, ele já era tomado como culpado antes mesmo de ficar provado que ele cometeu algum crime. Era assim que a Inquisição trabalhava. A tortura era apenas um método para forçar o réu a confessar abertamente aquilo que eles já sabiam que ele era: um culpado. Portanto, quando um indivíduo morria na tortura, dizia-se que a culpa era dele mesmo, por não ter confessado. Afinal, se ele confessasse, a tortura teria parado e ele não teria morrido. Portanto, morreu porque quis. A culpa era dele. A possibilidade de o sujeito não ter confessado simplesmente porque não fez nada não passava pela cabeça deles.

O papa Alexandre IV (1254-1261) foi o primeiro a autorizar essa lógica monstruosa. Ele absolveu todos os inquisidores por qualquer “irregularidade”, entendendo irregularidade como qualquer morte ou ferimento grave da vítima, por exemplo[16]. Assim, os inquisidores se sentiam livres para torturar sem peso na consciência: mesmo que a vítima morresse torturada, a culpa não seria deles. Eles ficariam impunes de um jeito ou de outro. A vítima, por outro lado, era culpada se confessasse ou se não confessasse. Seu único direito era aceitar o triste fato de que era culpada e admitir de uma vez o “crime”.

O historiador Henry Charles Lea escreveu sobre isso:

A sentença recitava que, em vista de suspeitas levantadas contra ele pelas provas, condenavam-no a ser torturado pela medida de tempo que julgassem adequada, para que falasse a verdade... protestando que, se na tortura ele morresse ou sofresse efusão de sangue ou mutilação, isso não seria atribuído a eles [os inquisidores], mas a ele [o réu], por não falar a verdade.[17]

Eugênio Pelletanafirma que o inquisidor torturava com tanta frequência e pelo tempo que lhe aprouvesse; apenas antes de despedaçar, em nome de Cristo, os músculos de outro cristão extraviado ou caluniado, apaziguava a própria consciência com esta declaração:

Ordenamos que a referida tortura seja aplicada de forma e pelo tempo que julgamos conveniente, depois de ter protestado, como protestamos, que em caso de lesão, morte ou fratura, a ocorrência só poderá ser imputada ao acusado.[18]

Em Lima, a tortura era aplicada acompanhada da seguinte sentença:

Decidimos, observados os autos e métodos do processo e suspeitos que dele resultam contra o réu, que devemos condená-lo e condenamos e que seja submetido à tortura, na qual determinamos que fique e permaneça tanto tempo quanto nos parecer conveniente, para que nela diga a verdade do que está testemunhado e acusado, com a afirmação pública que lhe fazemos de que, se durante referida tortura, morra ou seja estropiado ou resulte mutilação de membro ou perda de sangue – será por sua culpa e responsabilidade e não nossa, e em razão de não ter querido dizer a verdade.[19]

O Regimento do Santo Ofício, datado de 1640, igualmente prescreve que “se no tormento ela morrer, quebrar algum membro ou perder algum sentido, a culpa será sua, pois voluntariamente se expõe àquele perigo, que pode evitar confessando suas culpas”[20].

É preciso ter noção do quão monstruoso é uma determinação dessas. Para usar um exemplo análogo, seria como se uma moça fosse violentada por um bandido, e o juiz decretasse que a culpa foi da própria moça, pois ela poderia ter se entregado livremente ao estuprador antes que o abuso ocorresse, e assim não teria sido violentada. O que muda é que no caso o que estava em jogo era ainda pior do que um estupro: era a própria vida de um ser humano. Inquisidores poderiam assassinar uma vítima de tanto brutalizá-la, que mesmo assim a culpa era da vítima. É duvidoso se algum monstro moral como Hitler seria capaz de cogitar uma abominação dessas, tão facilmente admitida pela Igreja.

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

- Extraído do meu livro: "A Lenda Branca da Inquisição".

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.facebook.com/lucasbanzoli1)


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[1] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 122.
[2]ibid, p. 157.
[3]ibid, p. 221.
[4]ibid, p. 154.
[5] GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo.Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
[6] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 45.
[7]Bernardo Gui, Practica, trad. Mollat, vol. II, p. 107.
[8] PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 48.
[9] GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo.Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
[10]ibid.
[11]ibid.
[12] PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 33.
[13] MALUCELLI, Laura; FO, Jacopo; TOMAT Sergio. O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
[14] NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 141-142.
[15] BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição.Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 155.
[16]ibid, p. 45.
[17]LEA, Henry Charles. A History of the Inquisition of the Middle Ages, III, p. 5.
[18] PELLETAN, Eugênio. Prólogo ao livro de Gallois. Citado em: PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 119.
[19] PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 46.
[20]Apud NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 80.


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