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Quem era perseguido pela Inquisição?


Uma coisa que precisa ficar clara desde o início é que a Inquisição não precisava de uma “razão social” para perseguir suas vítimas: a simples acusação de heresia já era o suficiente para puni-los. Em geral, ela fazia questão de difamá-los para além do “crime” de heresia, mas a heresia em si mesma e por si só já era o suficiente para enviar um indivíduo à fogueira. Por mais óbvio que isso seja, alguns apologistas católicos assustadoramente desconhecem este fato. Há tempos atrás estive debatendo com um deles que dizia que a Inquisição não perseguia ninguém por mera “heresia”, mas por tumultos e violência de ordem social. Isso é tão falso quanto uma nota de 3 reais.

Basta uma lida rápida e superficial nos manuais da Inquisição para constatar facilmente que a Inquisição sequer se preocupava com os crimes de ordem social (estes eram preocupação do Estado), mas punia qualquer um que praticasse especificamente a heresia sob o ponto de vista católico romano do que vem a ser uma “heresia”. Isso porque muito do que a Igreja considerava heresia na época já não considera hoje. Até mesmo em relação ao protestantismo ela está retrocedendo[1]. Mas isso não impediu que milhares fossem assassinados por um conceito hoje antiquado de “heresia”.

O Manual Dos Inquisidores, escrito ainda na Idade Média e ampliado mais tarde, é muito claro ao afirmar o que vem a ser uma heresia para os padrões da época. Eymerich diz que é herege “se é contrário a qualquer verdade que a Igreja tenha declarado de fé; por exemplo, que o Espírito Santo não procede do Pai e do Filho como de dois princípios, ou que a usura não é um pecado”[2].Isso inclui até os católicos orientais no grupo dos “heréticos” e, portanto, passíveis de serem perseguidos e mortos pelo Santo Ofício[3]. Em outro momento, Eymerich ratifica que os ortodoxos eram mesmo hereges: “É herege Quem não acredita que o Espírito Santo procede do Pai e do Filho”[4]. E também:

Outras pessoas se afastam da Igreja tanto na obediência quanto na crença. É o caso, por exemplo, de quem se recusa a acreditar que o Espírito Santo vem do Pai e do Filho. Tais pessoas devem ser consideradas hereges, porque estão enganadas naquilo em que devem crer. Portanto, serão tratadas como hereges.[5]

Mais adiante em sua obra, Eymerich especifica quais grupos eram considerados heréticos:

São heréticos:
a) Os excomungados;
b) Os simoníacos;
c) Quem se opuser à Igreja de Roma e contestar a autoridade que ela recebeu de Deus;
d) Quem cometer erros na interpretação das Sagradas Escrituras;
e) Quem criar uma nova seita ou aderir a uma seita já existente;
f) Quem não aceitar a doutrina romana no que se refere aos sacramentos;
g) Quem tiver opinião diferente da Igreja de Roma sobre um ou vários artigos de fé;
h) Quem duvidar da fé cristã.[6]

Isso basicamente incluía no grupo dos heréticos absolutamente todos os grupos religiosos que não fossem bons católicos romanos. Nem protestantes, nem valdenses, nem cátaros, nem judeus, nem muçulmanos, nem ortodoxos aceitavam todos os artigos de fé da Igreja Romana, o que implica, evidentemente, que eles todos deveriam ser perseguidos. Certa mesmo era só a Igreja Romana, e quem não concordasse com isso deveria se arrepender ou ser morto. Eymerich reforça este pensamento quando se posiciona a favor da perseguição da Igreja contra pessoas de outras religiões, inclusive obrigando-as a adotar a fé católica:

E que ninguém venha nos dizer que não devemos julgar o que nos é estranho, ou que não podemos obrigar os infiéis a crer, nem através de processos nem através das excomunhões, porque só Deus chama por sua graça exclusivamente: quem pretende tirar desta maneira nossos poderes jurídicos, se engana. Tomás de Aquino não afirma que, se a Igreja não pode aplicar penas espirituais aos infiéis, pode aplicar-lhes penas temporais?[7]

Em outro momento, quando novamente responde à pergunta sobre “contra quem o inquisidor pode proceder”, responde incluindo os judeus e, por inferência, qualquer um que não seguisse à risca toda a doutrina católica:

Já dissemos que pode proceder contra os blasfemadores, lançadores da sorte, necromantes, excomungados, apóstatas, cismáticos, neófitos que retornaram aos erros anteriores, judeus, infiéis que vivem no meio dos cristãos, invocadores do diabo. Digamos que, de uma maneira geral, o inquisidor procede contra todos os suspeitos de heresia, os difamados de heresia, hereges, seus seguidores, quem lhes dá guarida ou ajuda e quem emperra o trabalho do Santo Ofício, retardando, direta ou indiretamente, sua ação.[8]

Como se não bastasse todo mundo ser herege se não fosse um católico muito assíduo e fiel, a Inquisição ainda considerava hereges até mesmo aqueles que não questionassem uma doutrina católica, mas que de certa forma prestassem auxílio a algum herege. Assim escreve Eymerich:

Serão legitimamente considerados hereges – é a opinião unânime dos teólogos e canonistas – os que visitam os hereges, ou os que os sustentam, ajudam ou acompanham. As suspeitas são, neste caso, suficientemente fortes para justificar por si mesmas processos por heresia.[9]

Entre as pessoas consideradas hereges por associação, estavam aquelas que ouviam sermões dos hereges, que entregavam a correspondência de um herege, que os ajudava, que não lançava no fogo os seus livros, que os visitava e que ousava dar esmola a um herege[10]. Os que fizessem isso, mesmo sendo católicos, também seriam perseguidos pela Inquisição. Eymerich esclarece que o simples acolhimento de um herege já era um forte sinal de heresia. Isso significa que, se a Inquisição continuasse funcionando nos dias de hoje, você católico estaria praticamente proibido de fazer visitas a qualquer pessoa que não fosse católica, sob o risco de ser considerado suspeito de pactuar com a heresia:

Façamos uma distinção entre os que acolheram hereges uma ou duas vezes e os que os acolhem habitualmente. Os primeiros podem estar inocentes. Podem não saber com quem estão lidando. Mas também podem estar perfeitamente informados, e, neste caso, são culpados. Culpados, desde que conheçam as heresias de seus hóspedes. Culpados, porque sabem que a Igreja persegue seus hóspedes; culpados, porque lhes dão acolhida justamente para que não caiam nas mãos da Igreja.[11]

A coisa piorava mais ainda se o hospedeiro de um herege fosse um judeu. Neste caso, até mesmo os seus parentes eram condenados, sem qualquer necessidade de maiores investigações:

Os hóspedes dos hereges, se estão excomungados há um ano, serão exilados para sempre, tendo os seus bens confiscados. Os inquisidores não chegaram a um acordo sobre o que fazer com os parentes próximos dos “hospedeiros”. Deve-se bani-los também? Não existe uma legislação clara a respeito. Se os “hospedeiros” são judeus, ou outro tipo de infiel, serão processados sem maiores investigações e condenados às penas previstas habitualmente: prisão perpétua, entrega ao braço secular, confisco dos bens.[12]

Também era condenado aquele que:

Soltar os prisioneiros da inquisição ou facilitar sua fuga; a quem ajuda os fugitivos para que não sejam presos de novo, ou a quem dificulta sua captura; a quem ousa colocar dificuldades, de uma maneira ou de outra, ao bom andamento de um processo, e na execução de uma sentença. Todos serão excomungados de pleno direito. Podem pegar penas bem pesadas, chegando a serem entregues ao poder civil [para serem mortos].[13]

Nas observações adicionais do inquisidor Francisco Peña, também era considerado herege:

1. Quem visita frequentemente o herege na prisão, fica cochichando com ele, e lhe leva comida, é suspeito de ser seu benfeitor ou discípulo;

2. Quem se lamenta muito pela captura ou morte de um herege deve ter sido seu amigo ou é alguém bem próximo a ele: a quem o chorão vai convencer de que ignorava os segredos do morto?

3. Quem declara que um determinado herege foi condenado injustamente, já que foi acusado de heresia e confessou, demonstra que apoia a seita do condenado e desaprova a Igreja que o condena;

4. Quem faz cara feia para os perseguidores de hereges ou para quem prega contra eles com sucesso é um deles. Do contrário, não teria tanto azedume no coração – e, consequentemente, no rosto – ao entrar em contato com quem odeia o que ele ama.[14]

Sua Santidade Pio V, na Constituição Si de protegendis, prevê para qualquer pessoa que se opuser de qualquer forma à pessoa do inquisidor, ou aos seus bens, à Inquisição enquanto instituição, e à execução das suas sentenças, as seguintes penas: perda de todos os bens, cargos e honrarias, por crime de lesa-majestade; destituição – se o culpado for um sacerdote – e entrega ao braço secular. O texto pontifico prevê, ainda, que todo aquele que interceder em favor de um oponente será considerado um protetor de heresias e condenado às mesmas penas.[15]

No “rol das fortes ou veementes suspeitas” também se encontrava quem não denunciava os hereges e quem guardava em casa livros proibidos pela Igreja[16]. O Édito de Lisboa, em 4 de janeiro de 1809, prescrevia a condenação de quem lesse, comprasse ou vendesse livros proibidos[17][18]. Basicamente, todos viviam numa constante atmosfera de medo e terror na qual qualquer um – até mesmo um bom católico – podia ser suspeito de heresia e perseguido pela Igreja. Luiz Nazario resume os critérios utilizados pelos inquisidores para considerar “herege” qualquer um que:

Eram igualmente perseguidos os que escondiam e defendiam hereges; os que se comunicavam com eles; os que os ensinavam a mentir diante da Inquisição; os que roubavam seus ossos queimados; os que se casavam com eles; os que se intrometiam na sua perseguição; os que lamentavam muito sua captura; os que declaravam uma condenação injusta; os que faziam caretas aos inquisidores; os que professavam ameaças à Inquisição; os que falavam ou faziam algo contra a fé mais de três vezes; os que se reuniam em segredo ou tinham comportamento diverso do comum. Mesmo sobre um único indivíduo recaía uma gama variada de abominações – os réus viam-se frequentemente cobertos por culpas em camadas.[19]

O autor faz ainda menção à mesma atmosfera de medo e terror já mencionada, sumariando aqueles que eram passíveis de perseguição pela Inquisição papal, o que incluía qualquer um que não fosse um católico extremamente fiel:

Os inquisidores lançaram, ao longo dos séculos, uma suspeita universal sobre a humanidade, sendo infinita a lista dos “criminosos” passíveis de punição: cátaros, valdenses e albigenses; mouros, judeus, conversos, cristãos-novos, judaizantes; bruxas, feiticeiros, invocadores do diabo, mágicos, místicos, videntes, adivinhos, astrólogos; blasfemos; bígamos; sodomitas; piratas; protestantes; reformistas; iluminados; iluministas; ateus; racionalistas; culpados, suspeitos ou infamados de heresia; heresiarcas; cismáticos; apóstatas; excomungados; infiéis; falsos inocentes; fautores; difamados pelo rumor público; irreverentes; sacrílegos; religiosos casados; falsos religiosos; confessores solicitadores; leitores ou possuidores de livros proibidos; charlatães da fé; falsos santos; perjuros; corruptores de testemunhos; ausentes, fugitivos, não cumpridores das penas, defuntos ou loucos culpados; impedientes do Santo Ofício; usurpadores de sua jurisdição e depredadores do cárcere...[20]

A Igreja também considerava hereges aqueles grupos de cristãos que ensinavam a pobreza absoluta de Cristo e dos apóstolos, como os fraticelli, que eram perseguidos justamente por essa razão. Os fraticelli eram em sua origem católicos franciscanos que queriam seguir à risca os princípios de pobreza pregados por São Francisco de Assis, em uma época em que os franciscanos já haviam se desviado de suas próprias origens. Por essa insolência, o papa João XXII os excomungou na bula papal Sancta Romana, em 30 de dezembro de 1317, e desde então eles passaram a ser considerados “hereges” e foram perseguidos pela Inquisição. Quando a Igreja se deparava com um herege fraticelli que criticava a riqueza da Igreja, ela devolvia com o argumento incontestável de que Judas era o “tesoureiro” dos doze. É, e tinham algumas moedas...[21]

Baigent escreve sobre os fraticelli:

Se os franciscanos, em fins do século XIII, haviam sucumbido ao mundo e à corrupção, também se achavam dilacerados por cismas. Muitos membros da Ordem franciscanos místicos “espirituais” ou “puristas” tentavam permanecer leais aos princípios do fundador. Não surpreende que essa sua posição inflexível logo os levasse a conflitos com a Inquisição dirigida pelos dominicanos, e não poucos incorressem na acusação de heresia. Em 1282 por exemplo, a acusação foi lançada a Pierre Jean Ouvi, o chefe dos franciscanos puristas no Languedoc; e embora ele fosse posteriormente exonerado, suas obras continuaram censuradas. No início do século XIV os franciscanos puristas achavam-se cada vez mais em choque com a opinião dominante de sua própria Ordem, com a Inquisição dominicana e com o papa. Em 1317, João XXII emitiu um julgamento definitivo contra os puristas. Sob pena de excomunhão, ordenou-lhes que se submetessem à sua autoridade e à corrente principal da Ordem. Muitos se recusaram e tornaram-se cismáticos, sob o nome de fraticelli. Em 1318, quatro irmãos fraticelli foram queimados pelos inquisidores como hereges.[22]

O problema com a pobreza era tão sério que os inquisidores tratavam de fazer perguntas capciosas na tentativa de descobrir se o réu se tratava de um cátaro, valdense ou fraticelli – os três tinham em comum o ideal da pobreza e condenavam a excessiva riqueza da Igreja. Uma das perguntas era: “Não ouviu falar da pobreza do Cristo e dos apóstolos?”[23].Se o pobre coitado respondesse que sim, ou seja, se ele concordasse que Jesus e os apóstolos viviam na pobreza, era logo identificado como um “inimigo da Igreja” e condenado como herege.

Tão preocupante era a teologia da pobreza que, como Malucelli corretamente salienta, “muitas pessoas foram torturadas e assassinadas de formas horrendas apenas por terem apoiado a tese de que Jesus e os apóstolos não possuíam riquezas ou bens materiais”[24]. E depois os apologistas católicos ainda querem encontrar moral para criticar a teologia da prosperidade das igrejas evangélicas neopentecostais, que, pelo menos, não matam ninguém por sua doutrina de prosperidade!

Havia ainda a pouco conhecida “seita dos apóstolos de Cristo”, fundada por Gerardo Segarelli, de Parma, queimado em 18 de junho de 1300. Seu crime era afirmar que São Pedro, o “primeiro papa”, vivia em completa pobreza, não fazia guerras e nem perseguia ninguém, mas permitia que todos vivessem em liberdade[25]. É claro que a Igreja Romana não poderia tolerar tamanha afronta.

No Manual do Inquisidor de Bernardo Gui (1261-1331), falando a respeito de outro grupo considerado “herético” pela Igreja Católica, os beguínos, é dito que deveriam ser assassinados pela Inquisição porque:

...Possuem e mantém muitas ideias errôneas, opondo-se à Igreja Romana e à sede apostólica e seu primado, bem como contra a autoridade apostólica do papa e dos prelados da Igreja de Roma. Pode-se constatar que entre eles existem aqueles que mendigam constantemente em público, pois, assim dizem, seguem a pobreza evangélica; outros não mendigam publicamente, mas alguns de seus membros trabalham e ganham seu sustento, levando porém uma vida pobre.[26]

A Igreja ainda tinha o cuidado de distinguir herege de herege. Existia o “herege contumaz”, o “herege pertinaz”, o “heresiarca”, e assim por diante. O herege “pertinaz” era aquele que, interpelado pelo juiz e intimado a abjurar de sua fé, mesmo assim se recusava a renegá-la, tal como os primeiros cristãos que se recusavam a negar sua fé diante da perseguição dos crueis imperadores romanos, e era entregue para ser queimado vivo[27]. Já o “heresiarca” era o demônio, o pior de todos os males – o que ousava fundar uma igreja que não fosse católica. A este tipo de “herege” era proibido livrá-lo do último suplício, mesmo se estivesse sinceramente arrependido[28].

Havia ainda os “hereges relapsos”, que eram culpados de reincidência na heresia. Eymerich diz que “estes, a partir do momento em que a recaída fica plena e claramente estabelecida, são entregues ao braço secular para serem executados, sem novo julgamento”[29]. O mais interessante é que quem ajudasse um herege também era considerado um “relapso”. Eymerich inclui entre os relapsos “quem, depois de abjurar, dá proteção a hereges, acompanha-os, ajuda-os de alguma maneira ou pede-lhes ajuda”[30]. E Malucelli observa que “o mero fato de ser suspeito de heresia o transformava automaticamente em reincidente em caso de novo processo”[31].

Até mesmo quem blasfemava durante um jogo era punido pela Inquisição. Assim diz Eymerich:

O blasfemador sabe quanta raiva o jogo e outras coisas podem provocar, e quantas injúrias heréticas podem desencadear. Que se cuide, se quer evitar a justiça da Inquisição![32]

O terrorismo psicológico era tão pesado que nem mesmo aqueles que falavam por brincadeira eram poupados:

O que dizer dos hereges “de brincadeira”? De acordo com alguns especialistas, deveriam ser menos severos com quem tiver proferido heresias para “fazer o bem”. Mas não se pode ser muito condescendente! E há vários exemplos de pessoas que dão importância – por brincadeira! – a opiniões idiotas que devem ser punidas. Igual a esses celibatários que dizem para quem quiser ouvir que terão uma mulher na outra vida porque não tiveram nenhuma nesta. Pelo menos, deve-se infligir-lhes uma boa multa que reverta em benefício de um local para o culto![33]

Os judeus que facilitassem o retorno de um cristão ao Judaísmo também eram perseguidos pela Inquisição:

De acordo com os termos da bula Turbato corde de nosso senhor o papa Nicolau IV, os bispos e inquisidores considerarão como cúmplices da heresia os judeus que tiverem facilitado de alguma forma qualquer o retorno ao Judaísmo de um dos seus ou a adesão de um cristão ao Judaísmo.[34]

Os judeus culpados de terem facilitado, de alguma forma, a adesão ao Judaísmo serão condenados às seguintes penas: proibição de conviver com os cristãos, multa, prisão e surra. Porém, a um crime particularmente grave corresponderá uma pena mais dura, podendo chegar até a entrega do culpado ao braço secular: cabe ao juiz decidir. Esta é a opinião mais comum entre os inquisidores a respeito deste assunto.[35]

Nem os índios escapavam dessa. Se um indígena se mostrasse desfavorável à conversão de alguém que quisesse se tornar católico, também seria castigado pelo Santo Ofício:

Mas se pela ventura de um índio, mouro ou gentio, tiver divertido ou impedido outro, que mostrasse vontade de se fazer cristão, e que isso se provasse contra ele, seria castigado pela Inquisição; como também aquele que tivesse feito a outro deixar o Cristianismo, como mui frequentes vezes acontece.[36]

Também os cristãos que por alguma razão quisessem se converter ao Judaísmo ou mesmo se praticassem preceitos mínimos da lei de Moisés eram condenados pelo “crime de judaizante”[37]. Francisco Peña é claro ao declarar que mesmo qualquer simpatia pela “seita judaica” já era o suficiente para atrair a perseguição da Inquisição: “O inquisidor procederá contra qualquer cristão que manifeste, por um dos indícios apontados, uma simpatia, de fato pela seita judaica”[38].

Mas não para por aí. Mesmo quem deixasse um convento estava sujeito à perseguição da Inquisição:

Quem se laiciza ou deixa o convento, se tiver a audácia de ficar um ano inteiro sob efeito da excomunhão, será, logicamente, também considerado suspeito de heresia, e, em vista disto, se verá na obrigação de enfrentar o julgamento do bispo e do inquisidor, que poderão trabalhar em separado ou em conjunto.[39]

Até mesmo o ato de discutir questões teológicas, se não fosse membro do clero, era punível pela Inquisição:

O inquisidor pode deve excomungar qualquer leigo, que publicamente ou não discuta questões teológicas.[40]

Isso significa que 99% dos apologistas católicos atuais seriam perseguidos pela Inquisição se ela continuasse existindo até hoje. Discutir questões teológicas era um privilégio exclusivo do clero, e pregar sem ser sacerdote foi a razão pela qual o papa excomungou Pedro Valdo e seus seguidores. Hoje, leigos da apologética católica discutem questões teológicas e pregam para católicos e não-católicos; devem, portanto, agradecer ao fim da Inquisição por isso. Todavia, paradoxalmente, estes mesmos apologistas católicos são justamente os que mais defendem a Inquisição! Vai entender...

A Inquisição levava tão a sério a conversa de que apenas os sacerdotes podiam discutir questões teológicas que, no auto da fé de 10 de julho de 1608, em Lima, ela queimou até a morte um sujeito que se atreveu a pesquisar se Adão tinha ou não tinha umbigo[41]! É assustador, mas a Inquisição punia pelas coisas mais triviais. Além de queimar quem se atrevia a dizer que Adão não teve umbigo, de castigar aqueles que blasfemavam por impulso no meio do jogo e também os que falavam heresias por brincadeira, pouca gente sabe que até mesmo quem questionasse o dízimo era punido pelo Santo Ofício.

Toby Green conta em seu livro sobre o trabalhador Luis Godines, de Córdoba, que em 1562 foi processado por dizer que “o dízimo pode ir para o inferno, pois foi criado pelo diabo”[42]. A Inquisição podia matar alguém por ser contra o dízimo, mas, curiosamente, os católicos esbravejam hoje em dia contra o dízimo das igrejas evangélicas, que é voluntário. Mais uma vez, é difícil compreender como funciona a mente de um apologista católico. Executar alguém por questionar o dízimo da Igreja Romana está certo, mas pregar sobre o dízimo voluntário em uma igreja evangélica é algo escandaloso, monstruoso, aberrante. É realmente um critério questionável...

Isso ainda não é tudo. Esforçada em perseguir pessoas pelos motivos mais nobres, a Inquisição processou, em 1794, uma mulher chamada Mariana Alcocer. Seu crime? Dizer que tinha uma oração para tornar-se invisível[43]. A Inquisição não podia tolerar tamanho ato de bruxaria, e tratou logo de denunciar a mulher. Mas o caso mais divertido ocorreu em 1810, quando a Inquisição “manteve encerrado por seis meses, num calabouço, um negro que ganhava o pão passeando pelas ruas de Lima cães, gatos, ratos, marmotas, macacos e outros animais que ensinara a dançar e fazer outras peripécias. Isso só podia ser arte do diabo!”[44].

O cânon 13 do Concílio de Tolosa (1229) dizia ainda que aqueles católicos que não se confessassem ao padre pelo menos três vezes ao ano seriam considerados hereges[45], e, como tais, passíveis de perseguição da Inquisição. O cânon 10 de um Concílio de Tolosa mais antigo (1084) excomungava os monges que permitissem que suas barbas e cabelos crescessem mais do que o “aceitável”[46] – e os excomungados também eram perseguidos pela Inquisição. O Santo Ofício condenou ainda a mexicana Antonia Machado, em 1604, por usar roupas de seda com uma franja dourada[47]. A Inquisição também perseguia implacavelmente os gatos, mas este tema é tão bizarro que merecerá um tópico especial só pra ele.

Ricardo Palma, historiador que investigou as fontes primárias e os documentos originais da Inquisição de Lima e que se tornou o autor do maior trabalho documentado a este respeito, seleciona ainda outros casos banais que para os inquisidores eram suficientes para processar uma pessoa e levá-la à morte caso ela não abjurasse:

Era-se herege, por exemplo, pela negação de que os sinos fossem as trombetas do Senhor; por se ter praticado um simples empréstimo a juros, classificado sempre pela Igreja como pecado de usura; por se haver engarrafado o diabo, mediante algum recurso escuso de alquimia; por se ter recitado os Salmos sem acrescentar o Gloria Patri; pela leitura de uma tradução da Bíblia; pela discussão de um artigo do catecismo; por vestir camisa branca no sábado. Por dar aos filhos nomes hebreus; por ter virado o rosto para a parede ao morrer; por matar na páscoa um carneiro pai; por se ter lavado pela manhã até ao cotovelo; por se ter enxaguado a boca após a refeição; pelo não uso de vinho à refeição; por se ter separado a gordura do toucinho na hora de comer; por se ter experimentado na unha o corte da faca; finalmente, por se ter murmurado contra a Inquisição.[48]

E a lista vai longe. O mais interessante é que praticamente nada disso é considerado heresia para os padrões da Igreja Católica Romana atual. Já na época, a mesma Igreja considerava estes pecados suficientes para poder levar uma pessoa à morte através da Inquisição. No auto da fé de 5 de abril de 1592, em Lima, a Inquisição queimou até a morte Jorge Núñez, Juan Fernandez, Pedro Contreras e Francisco Rodríguez, pelo terrível crime herético de terem tirado a landrecilla do carneiro[49]. E ainda tem lunático dizendo que a Igreja Romana é assistida infalivelmente pelo Espírito Santo e comandada por papas infalíveis, que não muda e que apenas transmite incorruptivelmente o depósito da fé apostólica!

A Igreja perseguia e matava pessoas até mesmo por dizer a mesma coisa que os apologistas católicos afirmam hoje. Um francês chamado Francisco Moyen, revoltado com a adoração descarada que Maria recebia em seus dias, foi condenado pela Inquisição por causa da sua alegação de que “a Maria e aos santos só se deve venerar”[50]. Outra “heresia” dita por ele foi que “é questionável a existência do limbo”[51]. Curiosamente, a Igreja Romana hoje afirma que Maria deve apenas ser venerada (ao menos oficialmente) e toma como questionável a existência do limbo, que é hoje considerado apenas uma “hipótese teológica” pelo magistério da Igreja. Ou seja, um homem foi condenado pela Inquisição por dizer os mesmos preceitos teológicos que a Igreja ensina hoje.

Muito mais assustador do que isso era a forma com a qual a Igreja tratava as crianças que sofriam estupro. O Regimento da Inquisição prescrevia que, “se o menino corrompido não denunciar o que lhe aconteceu em até um dia depois de ter sido violentado, ele será queimado por isso”[52]. Ou seja, como se já não bastasse o sofrimento físico e psicológico de ter passado por um estupro, a pobre criança ainda podia ser queimada viva por isso, pela Igreja assassina. Se era assim que a Igreja tratava crianças católicas, imagine o que ela não fazia com os protestantes. O Édito das Delações, promulgado todos os anos, no terceiro domingo da Quaresma, conclamava todo mundo a denunciar os protestantes para serem mortos na fogueira:

Igualmente, ordenamos que nos denuncieis caso algumas pessoas tenham dito ou acreditado que a seita de Martinho Lutero é boa, ou tenham crido e aprovado alguma opinião dele, como dizer que não é preciso confessar-se com um sacerdote. Ou que o papa e os ministros do altar não têm poder de absolver os pecados. Ou que na hóstia consagrada não está o verdadeiro corpo de Jesus Cristo, e que não se deve rezar aos santos...[53]

Se a intolerância da Igreja envolvia as coisas mais triviais, quanto mais com aquilo que atingia em cheio algum dogma fundamental do catolicismo romano. No auto da fé de Lima, em 31 de dezembro de 1625, o português Juan Acuña de Noroña, de 55 anos, foi queimado vivo por negar a imortalidade da alma[54]. E o auto da fé de 30 de novembro de 1587 condenou à morte o frei Juan Cabello, diácono agostiniano, por ter se casado[55], ou seja, por ter feito a mesma coisa que fizeram Pedro (Mt.8:14), Filipe (At.21:8-9), os apóstolos (1Co.9:5), os irmãos de Jesus (1Co.9:5), todos os bispos cristãos (1Tm.3:2) e todos os sacerdotes do AT (Ez.44:22).

Todas as vítimas da Igreja intolerante e assassina, caso abjurassem a seus “erros”, recebiam diversas penas, que podiam variar da penitência à prisão perpétua, e se não abjurassem eram queimados pela Igreja como “hereges pertinazes”. Para isso a Igreja os entregava ao “braço secular”, um eufemismo para a condenação à morte[56], uma vez que a Igreja obrigava o Estado a executá-los[57].

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

- Extraído do meu livro: "A Lenda Branca da Inquisição".

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.facebook.com/lucasbanzoli1)


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[1]Confira em:
1) http://heresiascatolicas.blogspot.com.br/2015/12/catecismo-catolico-refuta-apologetica.html
2) http://www.igrejacatolica.pt/bento-xvi-apoia-luteranos-e-outros-protestantes/#.V12cfBxrjIU
[2] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 33.
[3]Isso porque os ortodoxos negam que o Espírito Santo provenha do Pai e do Filho (eles creem que provém só do Pai, o que para a Igreja Romana medieval era uma “heresia” escandalosa). Efetivamente poucos ortodoxos foram mortos pela Igreja de Roma, porque o lar da grande maioria deles era no Oriente, especialmente na Grécia. Mas isso em nada muda o fato de que eles também estavam sujeitos às perseguições do Santo Ofício em função de “erros” na fé.
[4] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 41.
[5]ibid, p. 69.
[6]ibid, p. 36
[7]ibid, p. 63.
[8]ibid, p. 200.
[9]ibid, p. 40.
[10]ibid, p. 71.
[11]ibid, p. 72.
[12]ibid, p. 72.
[13]ibid, p. 74.
[14]ibid, p. 74-75.
[15]ibid, p. 76.
[16]ibid, p. 86.
[17]Apud BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 175.
[18]Iremos retomar este ponto no capítulo 5 deste livro, dedicado exclusivamente a tratar da perseguição ao conhecimento, através da proibição de compra ou venda de livros considerados “danosos à fé católica”.
[19] NAZARIO, Luiz. Autos-de-fé como espetáculos de massa. São Paulo: Associação Editorial Humanitas: Fapesp, 2005, p. 72-73.
[20]ibid, p. 72.
[21]Apud EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 41.
[22] BAIGENT, Michael; LEIGH, Richard. A Inquisição.Rio de Janeiro: Imago Ed., 2001, p. 75.
[23] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 113.
[24] MALUCELLI, Laura; FO, Jacopo; TOMAT Sergio. O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
[25] FALBEL, Nachman. Heresias Medievais. São Paulo: Editora Perspectiva, 1977, p. 67.
[26] GUI, Bernando., Manual de I’Inquisitor, pp. 110 e 116.
[27] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 47.
[28]ibid.
[29]ibid, p. 48.
[30]ibid.
[31] MALUCELLI, Laura; FO, Jacopo; TOMAT Sergio. O livro negro do cristianismo: dois mil anos de crimes em nome de Deus. Rio de Janeiro: Ediouro, 2007.
[32] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 51.
[33]ibid, p. 212.
[34]ibid, p. 59.
[35]ibid, p. 60.
[36] Pyrard de Laval. Viagem de Francisco Pyrard de Laval contendo a notícia de sua navegação às Índias Orientais. Ed. Joaquim Helidoro da Cunha Rivara. Porto: Livraria Civilização, 1944, v. 2, p. 73.
[37] EYMERICH, Nicolau; PEÑA, Francisco. Manual dos Inquisidores. 2ª ed. Rio de Janeiro: Rosa dos Tempos, 1993, p. 60.
[38]ibid, p. 132.
[39]ibid, p. 70.
[40]ibid, p. 195.
[41] PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 124.
[42] GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo.Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
[43] PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima. São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 134.
[44]ibid, p. 35.
[45]Disponível em: http://www.biblicalcyclopedia.com/T/toulououse-councils-of-(concilium-tolosanum).html
[46]ibid.
[47] GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo.Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
[48]ibid, p. 19.
[49]ibid, p. 41.
[50]ibid, p. 83-84.
[51]ibid.
[52] GREEN, Toby. Inquisição: O Reinado do Medo. Rio de Janeiro: Editora Objetiva Ltda, 2007.
[53]Apud PALMA, Ricardo. Anais da Inquisição de Lima.São Paulo: Editora da Universidade de São Paulo: Giordano, 1992, p. 98.
[54]ibid, p. 76.
[55]Ibid, p. 38.
[56] BETHENCOURT, Francisco. História das Inquisições: Portugal, Espanha e Itália – Séculos XV-XIX. São Paulo: Companhia das Letras, 2000, p. 346.
[57]Discorrerei mais sobre este ponto no capítulo das refutações.


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