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Os últimos cem dias de Cavaco Silva, com cheiro de caril, sabor de paprika e licor de fel







Imagem do Kaos



O facto mais relevante da vida política portuguesa terá passado despercebido, ao espectador de Lineu, e refiro-o aqui, apenas com o carinho ditado pelas efemérides, e também por que o saber não ocupa lugar. Falo, evidentemente, dos últimos cem dias da agonia de Cavaco Silva. Para mim, talvez dos portugueses para quem a vida foi ditada pelo maior desastre daquela Democracia em que acreditei, o ocaso cronológico da estirpe de Boliqueime é importante, existencial e obsessivo. Se o mundo não acabar antes, em março de 2016, essa criatura terá sido empurrada para o limbo crepuscular de onde nunca deveria ter saído.

Como muitos sistemas estelares, a época que estamos a viver é uma era de dois sóis, um algarvio, que já está a acabar, e um prodígio estelar de Goa, que pensa estar a nascer em força. Para mim, situado nas bancadas da Terra, ambos não passam de um espetáculo, é certo, ditado pelo ágon, mas substancialmente desfasado da realidade intelectual em que me movo. Une Cavaco Silva, a António Costa, a mesma obsessão de que iriam chegar a qualquer lado, com as diferenças de que o primeiro aspirava chegar a um posto do Antigo Regime, e chegou, numa bolha temporal que a paciente Democracia consentiu, de fingir que continuava lá, enquanto o outro delira com ser o Fim da História, e assumir o lugar de condottieri do Parlamentarismo do faz de conta. Deve-se-lhe a lufada de ar fresco de ter devolvido, ou ter tentado devolver, à Assembleia, o poder de legislar, depois de décadas de caixa de ressonância de governos autoritários e dirigistas. 

Sobre Cavaco Silva, tudo, ou quase tudo já foi dito. Repito "tudo, ou quase tudo", por que ainda há mais bancos para falir, e em três meses ainda pode acontecer muita coisa. O Cavaquismo, uma coisa que minou a Liberdade, arrastou-se, grosso modo, entre 1985 e 2016, o que é muito tempo. Correspondeu ao desmantelamento da Agricultura, das Pescas e da Indústria; à ascensão do novo riquismo e da insignificância, e à proliferação das soluções locais do neo liberalismo chão. Na fase final, o seu entretimento favorito foi levar à falência bancos, e não banqueiros, e tornar o país num pântano de incredulidade.  A Islândia prendeu-os, o Cavaco medalhou-os. Cavaco Silva, um algarvio típico, autista e miserável, nunca percebeu que estava em Democracia, e menos ainda percebeu que tinha arruinado o país, para os próximos cem anos. A História se encarregará de o reposicionar, com palavras mais duras do que as minhas.

Cavaco Silva foi o ovo da serpente do poucochismo monhé, uma corrente local, que, depois de muitos flagelos, Portugal ainda teve de aguentar. O poucochismo monhé é uma forma de nasrcisismo equivalente à anterior, mas com manifestações mais suaves, mais up to date, e com maiores pretensões. Enquanto um foi a York sacar um doutoramento em arruinar países, o outro ficou por cá, e, entre tirar as putas do Intendente, para entregar o Intendente aos amigos, resolveu transformar o restante país num incidente camarário. A coisa é interessante, já que abalou a monotonia em que o país estagnara com Aníbal, para quem as maiorias absolutas eram um sucedâneo do monocordismo da Câmara Corporativa, e introduziu um novo paradigma, onde os ganhadores das eleições não são os mais votados, mas os arranjismos do dia seguinte, de acordo com os projetos conjugados.

Sendo a Democracia um lugar das surpresas, António Costa mostrou-se supreendente, e conseguiu surpreender-nos. Ficamos, pela primeira vez, a saber que havia um gajo em campo que, quer ganhasse, quer perdesse, ganhava sempre. Suponho que seja isto o estalinismo, enunciado na célebre forma de que o que conta não é quem vota, mas quem conta os votos. António Costa contou os votos, e não os contou sozinhos. A diferença é que o eleitor ficou a assistir à contagem, e percebeu que, doravante, devia votar de modo a que não acontecessem marés de segundo plano. Supõe-se que, esgotado o modelo político de António Costa, também nos devamos acautelar contra os perdedores da segunda fila.

Ao contrário de Cavaco, figura deplorável, desde sempre, e para sempre, não se pense que sinto o mesmo por António Costa, por que não sinto. Matematicamente falando, acho-o uma figura surpreendente de um tempo monótono, já que afastou o espetro da cardinalidade dos resultados eleitorais e introduziu um novo paradigma em rede, muito mais próximo da Teoria dos Conjuntos. Doravante não ganhará que se enumera em crescendo, mas quem melhor se reúne em grupo, e eu diria que a Democracia é mesmo isso, ou, melhor, também pode ser isso. A coisa ameaça pegar, alastrar às presidenciais, onde ninguém ganhará, mas nos arriscamos a ter um punhado de candidato fracos, muito chegados à primeira fila, e até deixar de ser portuguesa, para ser peninsular, ibérica, e por aí fora, o que ainda concederia ao António Chamuça uma maior singularidade e uma estranha oportunidade histórica. Mais uma vez, enquanto intelectual, e, portanto, incompatível com as frágeis razões da Política, remeto-me ao lugar do espectador, e limito-me a conceder-lhe o benefício do lúdico, mas com uma irremediável reprovação do ético, e quem entender estas palavras que medite bem nelas, pois são clarividentes. Como diz a voz do povo, o mestiço não serve ninguém a não ser a si próprio, com a exceção de Cavaco Silva, um reprovável mestiço de raça única, algarvia.

Após uma primeira planagem, António Costa prepara-se agora para atingir a altitude demagógica do cruzeiro, com os teclados das diferentes sensibilidades: foi erguido ao pódio pelos vencidos da linha de trás, e, agora, sempre que os derrotados da segunda fila imergirem nas suas idiossincrasias próprias, ele escolherá a razão de estado, que mais genericamente rege as correntes conservadoras. Utilizando palavras simples, governará à esquerda, sempre que puder, e encostará à direita, quando tal convier. De um certo ponto de vista, isto é brilhante, e eleva-o à condição de condottieri, já que transforma a tradicional oscilação das alternâncias numa mera questão de sabores, entregues aos paladares do líder único. Na essência, poderia ser uma aspiração a governar muito tempo e para sempre. Creio ser isto o lado Jabba de António Costa, mas a sua Guerra das Estrelas é muito pobre, e muito cheia de banifs, e durará tão só o tempo que durarem as efemérides e as ocorrências.

Mais surpreendente do que tudo, vai ser um cenário em que os próprios partidos do monolitismo vão poder permanecer idênticos a si mesmos. Para os incautos e nefelibatas, o Partido Comunista Português tinha, finalmente, dado o grande salto no sentido do aggiornamento, mas a verdade é que não deu: Cavaco Silva sempre se serviu a si mesmo, António Costa está a aprender como se pode servir, e o PCP continua-se a ser autofágico, através de quem calha. Geometricamente, sempre que o âmago ideológico dos neo estalinistas o leve a dar esticões de veto e de niets, cá estarão os papalvos coelhistas para o suportar, e, quando lhe convierem algumas inovações, lá embarcará na sinistra. Na essência, continuará o mesmo, já que se o povo não quer, ou não pode, mudar, muda-se o povo.

À margem disto, ou, em quarto com vista para isto, o grande mérito de António Costa será o de ter evitado um Bloco Central, através da emergência de um estranho Bloco Descentrado, e nós iremos pagar isso ao preço das inovações.

Como não é interessante perder tempo com previsões, nós vamos deixar as coisas correr, e a realidade banifar-se. Os islandeses puseram todos na prisão, mas nós somos mais modestos, e vamos contentar-nos com pôr todos cá fora, como de costume. Como dizia o outro, creio que já nem um segundo vinte e cinco de abril chegaria para limpar todos estes estorvos.

Reentro na realidade, e relembro ser este um tempo natalício, um tempo da família, daquele primo do Mourinho que deu sem secretário de estado, e lembro que nos devemos preocupar com as coisas íntimas, as coisas do coração, aquelas que verdadeiramente nos tocam, e, se muito não for pedir-vos, por favor, votem a favor da conservação, na Torre do Tombo, do formidável espólio imagético de Maria de Boliqueime, teras de fotografia, que, entre a ternura e apelo do coração, polvilharam de profundidade, de carinho e de muito engenho, estes dez anos de desastre português.

Muito boa noite, e umas festas felizes, sim, muito na graça de Deus.



(Quarteto da teoria dos conjuntos, no "Arrebenta-SOL", no "Democracia em Portugal", no "Klandestino" e em "The Braganza Mothers")


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