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Claude Farrère - Fumaças de Ópio - A Igreja


A IGREJA


Quando despertei, compreendi imediatamente: meu relógio marcava nove horas e treze minutos. A igreja estava fechada. O porteiro não me viu em meu recanto e me acho prisioneiro.
Prisioneiro. Eu abro a boca para gritar, mas depois ergo os ombros. Para quê? Ninguém me ouviria. Lá fora está nevando. A grande praça certamente está vazia, e, além disso, as paredes são muito espessas. Depois, quem se importaria com meus gritos?
Não, se não há com quem contar, esperarei que a igreja reabra para a missa da aurora; só me resta aguardar e tornar a adormecer. Fixa ideia essa que me veio, de entrar nessa diabólica igreja para escapar uma hora do vento áspero das ruas! Fixa ideia, sobretudo, de me esconder ao fundo desse confessionário, para aqui sonhar entre os pecados furtivos dos devotos, sorrateiramente confessados com rubor, através da grade estreita, e da cortina grosseira, na semiescuridão estofada do santuário. Pela minha grande sorte, a nave está aquecida. Com passos incertos eu me arrisco na direção do aquecedor, chocando aqui e ali em bancos e cadeiras, pois está terrivelmente escuro. Muito longe, pela dilatação misteriosa das arcadas, uma lâmpada vermelha queima solitária, brilhante como uma estrela. Reina um enorme silêncio, e cada um dos meus passos provoca no alto da abóbada um eco bizarro, inverossimilmente prolongado.
Junto ao banco dos fabriqueiros, encontrei um canto tépido e suficientemente confortável. Estendi minha capa forrada sobre três genuflexórios e me deitei, antes bem que mal. Ao redor, as capelas, os pilares e os tabernáculos pareciam montar guarda em torno a mim. E apesar da estranheza do lugar, eu me sentia tranquilo e calmo. A sugestão do meu isolamento absoluto se reforçou de uma impressão de seguridade extrema. O mundo exterior, distante, reduziu-se em meu torpor, a um perigo contornado, — um perigo brumoso e gelado que se excluía no calor doce da nave gótica, nas paredes imensas, e nas portas trancadas. Somente meus olhos, já habituados à obscuridade, descobriam, nos vitrais antigos, a transparência macilenta da noite enevada. E nenhum ruído me chegava, salvo muito incerto e inconstante, os últimos sons das buzinas dos bondes retardatários na cidade deserta. E eu voltei a dormir.
Ora, essa aventura me aconteceu em Lyon, na igreja de Saint-Jean-L’evangeiste, catedral metropolitana do primatode Gaules, no ano da graça de mil e novecentos, à sétima noite de janeiro.

Eu não sei absolutamente a hora que poderia ser quando me despertei pela segunda vez. Quis consultar o relógio masminha caixa de fósforos estava vazia. A lâmpada vermelha que eu havia visto antes, me estava sem dúvida oculta por um pilar, pois eu não a via mais.
Imediatamente, na nave rigorosamente vazia, eu ouvi passos.
Eu ignoro as formas mais usuais que revelam o terror entre os homens. Nos livros, se fala de cabelos eriçados, de suores frios e de tremores convulsivos. Eu não experimentei nada parecido. Entretanto, eu senti tanto medo, que durante alguns segundos, ele pareceu deixar-me louco. Todas as faculdades pensantes do meu cérebro vacilaram. Uns pedaços de ideias turbilhonaram em mim sem conseguirem chegar a se unirem em ideias completas. Se bem que eu nem cheguei mesmo a supor uma causa, — natural ou sobrenatural, — ao ruído que continuava a ouvir. E permaneci dentro do abrigo de minha capa, paralisado e fulminado.
Os passos apavorantes percorriam toda a nave, da porta principal ao coro. Lá, eles subiam avançando no altar-mor, e não se ouvia mais enquanto pisavam no tapete. Mas, pouco depois eles ressoavam novamente distantes e velados. Percebi que eles contornavam o altar por detrás. E após um breve silêncio, — ainda atravessando o tapete, — eu os ouvi retornando a grande nave. Passaram a dez metros de mim, — dez metros! — E se distanciaram,lúgubres, surdamente repetidos por um eco arrepiante. Foram até a porta e lá se deteram.
Que fazer? Levantar-me, andar por minha vez, caminhar direto até o ser inverossímil, que, meia-noite tocando, surge no seio da catedral inacessível? Isso, eu não teria feito nem por um reinado; — nem pelo cavalo de Ricardo III! Calar-me, ficar quieto, sem mover-se e nem respirar, sem ver nem compreender, e viver, não, agonizar ainda cinco, seis, sete horas… Quantas horas? Os fisiologistas afirmam que os sonhos, — e por consequência os pesadelos, — começam e terminam necessariamente no mesmo instante, alguns complicados, outros inextricáveis, como sejam. E, portanto, para nos acordarmos de um sonho terrificante, não se deve deixar a razão evadisse da cabeça, — pois ao sair de um desses sonhos mais longos, entretanto, não terá havido mais que dois tic-tacs do pêndulo. Mas este está sendo vinte, está sendo trinta mil pesadelos sucessivos, ininterruptos, que vieram a se encarniçarem sobre meu cérebro, — pois que trinta mil segundos são o que me separam do nascer do sol.
Compreendi a evidência de que não poderei resistir; que ao amanhecer, os bedéis não acharão na nave, deitado sobre o genuflexório dos fabriqueiros, mais que um cadáver, ou melhor, que um possesso, que um louco uivando e arranhando com os olhos brancos revolvidos em suas órbitas. E de quatro, rastejando entre as cadeiras, me deslizei obliquamente, para o centro da igreja, — pálido com a ideia de uma cabeçada ou de um rangido revelador, me desviei até as lajes medianas aonde os passos acabaram de passar, e parei desfalecido.
Esperei algum tempo. Os passos não se decidiram mais a voltar. Eu os escutava martelarem longe nas lajes sonoras, à direita, à esquerda, atrás. Por duas vezes eles atravessaram o coro; e então ouvi o ranger da pequena porta de mármore. Depois, ao fim de uma nave lateral, uma cadeira cai, e isso fez um longo ruído bizarro que me tranquilizou sem que eu saiba porque. Mas por um minuto somente, pois o medo me estrangulou novamente desde que os passos recomeçaram. Eles tomaram enfim a passagem central da grande nave, e senti o coração hesitar em meu peito. Por certo, nesse instante minha vida não valia grande coisa: a menor distração, um estalo na madeira, um sopro de vento, e eu estaria morto, morto de medo, simplesmente. Mas nada crepitou nem suspirou. E eu vi, de tão perto que me roçou, um grande capote marrom, sobrecoberto por um capuz de monge, e tudo o mais se fundiu na noite.
Não importa! Eu respirei com toda minha força: eu havia visto, e porque havia visto, isso já era menos terrível. E depois, a coisa havia passado por mim sem me ver, sem me descobrir. E isso por si só me conferia uma evidente vantagem: de nós dois, eu era o melhor escondido, o mais misterioso. Homem ou fantasma, ele não teria quiçá que a mim para lhe devolver ao cêntuplo meu medo de há pouco, nada mais que uma cadeira jogada em terra, ou uma explosão de riso nesse silêncio majestoso.
O ser incomum se deteve junto ao altar-mor. Uma vez mais eu havia deixado de ouvir seus passos sobre o tapete dos degraus. E de súbito, uma luminosidade dança junto ao tabernáculo. Dois círios se ascenderam. E na pequena zona iluminada, eu revi o manto marrom. O capuz estava derrubado e pude distinguir vagamente uma cabeça de homem, com longos cabelos lançados para trás.
Depois, a visão estendeu os braços, e o manto tombou por terra. Sobre a brancura do altar, um corpo magro e alto se desenha,vestido com uma espécie de uniforme bizarro, negro, ornado de ouro e com uma espada. Pude ver muito bem a espada, pois no mesmo instante, o desconhecido a desembainha, e a chama dos círios jorra por sobre a laminanua. Essa era uma espada ligeiramente curva, semelhante a um sabre, com um cabo dourado. O homem a pousa sobre o altar, depois desafivela a bainha, que cai sobre os degraus com um tinido de metal.
E então presenciei um espetáculo o mais singular.
O homem negro e bordado de ouro deixa o altar-mor e se dirige para a nave da direita, para retornar um instante depois carregando em suas mãos a lâmpada vermelha que eu havia visto primeiro que tudo. Essa lâmpada, ele a pousa defronte o tabernáculo, entre os dois círios. Tudo isso rápido e sem hesitação nem apalpadelas. O homem evidentemente conhecia cada recanto da catedral, e se guia na obscuridade como em pleno dia. Após o que, estendendo as mãos por sobre a lâmpada, ele permanece demasiados minutos imóvel, como se fosse queimar voluntariamente seus dedos. E ouvi, no silêncio absoluto, uma espécie de encrespamento regular, parecido ao que seria uma fritura minúscula. Olhei melhor então. A mão do homem negro não chegava a tocar a chama: ele tinha na ponta de seus dedos uma longa agulha, e por intervalos, a mergulhava num pequeno frasco que eu não havia visto anteriormente. Era portantoa agulha que crispava acima da lâmpada vermelha; a agulha, e a substância desconhecida cujas gotas cosiam-se dessa maneira, uma após a outra. Agora as volutas de uma fumaça pesada subiam e descendiam em frente ao altar, e um odor bizarro jamais sentido, penetrava em minhas narinas, tênue e possante. Isso durou de dois a três minutos. Depois, com um gesto solene, o homem aproximou seus dedos e pareceu engolir as cinzas desse perfume misterioso.
Pensamentos ansiosos soltaram-se em mim, pensamentos de mácula e de sacrilégio, de missa negra e de bruxaria. Mas não, a porta de ouro do tabernáculo permanecia fechada, e, visivelmente, o homem estranho respeitava o lugar sagrado. Duas vezes eu o vi, — subindo ou descendo as escadas, — riscar em seu peito um largo sinal da cruz. Esse homem ali era cristão e católico, — familiar das igrejas, — e quanto mais me assegurava, mais me perturbava e me inquietava. Existiria pois, ao seio de minha religião moderna e liberal, cultos esotéricos cujos padres, vestidos de negro e de ouro, cingidos de espadas curvas, oficiavam obscuramente, longe de todos os fieis, na solidão das catedrais noturnas? Nesta mesma hora, outros pontífices semelhantes, ao fundo de outras igrejas, cumpririam ritos idênticos? E o mesmo incenso estranho queimaria sem dúvida por sobre as lâmpadas litúrgicas, jogando pelas naves vazias seu aroma perturbante? Seria um momento eucarístico, quando esses padres porta-espadas elevam em seus dedos o incenso consumido pela chama? — E o teriam como uma hóstia?
Eu não tinha mais o mesmo medo, agora era um medo de tudo. Um mal-estar grandioso se apoderou dos meus nervos. Demasiadas suspeitas inquietantes sitiavam meus pensamentos. E de instante em instante se apoderava em mim a tentação de romper o encanto do silêncio e de mistério a cujo eu me sentia constrangido. O gesto, imaginado a todo momento, — a cadeira derrubada sobre as lajes, ruidosamente, — meus dedos o esboçavam agora, sorrateiramente atraídos pelo espaldar do genuflexório mais próximo. Uma obsessão de tumulto e de fracasso me opunha.
E subitamente acabei cedendo. Com todo o meu vigor retirei o genuflexório do chão e o lancei sobre a abóbada. Ele recai, eu não sei onde, com uma espécie de detonação pavorosa, indefinidamente repercutida por todos os ecos uivantes. E eu sucumbi, desfalecido de ansiedade e de desejo, ao terror soberano e atroz do outro, do homem, lá em cima, que não havia ainda tido medo. Meus olhos ávidos se afincaram sobre sua silhueta grave erguida ao pé do tabernáculo.
Ora, ele nem se mexeu. Apenas se volta negligentemente para escrutar a igreja negra. Um segundo, e depois o ouvi rir, rir de um estrepito breve e desdenhoso, rir e se virar. E o terror que eu lhe havia atirado refletiu violentamente no meu coração, repercutido em sua substância intrépida. Que homem seria esse ali, e que sortilégio, — o sortilégio, quiçá, de seu incenso fantástico, — o eleva tão alto acima dos mortais?
Então, o que me restava de razão vacila e dança,como vacilavam e dançavam os dois círios do altar. Desmoronado, aniquilado, sem vontade de gritar nem de me calar, o tempo, o lugar, a vida tornaram-se noções indistintas a cujas eu deixei de ter consciência. Não desanimado, mas ridículo, eu vi numa bruma de sonho, o homem negro e ouro, tornar a levar eu não sei onde, a lâmpada litúrgica, depois cingir sua espada e afivelar seu manto. Eu o vi, não, eu o adivinhei descer do altar, e ouvi seus passos sobre as lagens, sem estar mais certo que esses não fossem somente o eco de seus passos precedentes que se repetiam em minhas orelhas. Eu ouvi estalar uma porta e o ranger das escadas de madeira. Enfim, minha última sensação dessa noite de hipnose, foi perceber sua presença obscura no alto do púlpito, e as dobras flutuantes de seu hábito encostaremsobre a rampa de veludo. Os círios, usados até o fim, pestanejaram e adormeceram, restituindo à nave profunda sua obscuridade mais temível…


Sono, letargia, semi-morte? Eu não sei mais. A aurora terna, mais pálida ainda por estar nevando, aclara tristemente os vitrais da igreja. As chaves rangem, uma porta se abre, sacristãos piedosos, cá e lá, sem me ver, sem nos ver. Pois ele ainda estava lá. As paredes góticas não teriam nada entreaberto para lhe dar uma passagem miraculosa. Eu o ouvi descendo do púlpito, reconheci seus passos ritmados sobre a abóbada sonora. Ele não se ocultava mais. Ele caminha em direção a porta, sem pressa. Eu o examinei, e o rocei com um tremor, justamente por sentir, realmente, o cabo de sua espada sobre seu capote largo. Ele se detém no átrio, defronte a praça branca de neve. E pude ver sua face humana comum e seus olhos, — olhos muito fixos, — em cujos não encontrei o olhar.
Depois, ele se vai simplesmente, desaparecendo imediatamente na neve.


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