
AS BESTAS
O palácio de Tong-Doc fica ao final da cidade. A cidade é uma capital do Extremo-Oriente, uma capital bastarda, mongol e malaia. Um povo franzino e escuro, que se curvou ao julgo bárbaro dos homens de faces brancas vindos do oeste.
O palácio de Tong-Doc não é, portanto, mais que uma pesada construção, que tem por torres eriçadas, algumas grades de colunatas à moda dos anos vinte. O velho príncipe, traidor e servil, jogouàs urtigas sua honra de patriota e sua lealdade de fiel; — jogou às urtigas as tradições ancestrais, cobrindo-as com sua filosofia céptica; — proclamou-se ostensivamente europeu, democrata e católico, mas conservou, não sem muitas desculpas corteses, uma simpatia pela arte diferente de sua raça: o palácio de Tong-Doc é um parque sombreado por grandes cedros, onde dormem espalhados cinco zimbórios e alargados por vastos terraços. O chão é de mármore e as paredes de ébano; o telhado é todo em porcelana verde. E por toda parte há uma profusão de madrepérola incrustada. A água jorra livremente sob as árvores, e o vento leva seu frescor até o fundo das últimas salas onde o sol jamais violou as suas varandas.
Dentro do yamem que lhe é reservado, — sob o golpe das pás ritmadas dos pancás de seda branca, — a filha de Tong-Doc, que no verão passado foi princesa, dorme a sesta do meio-dia.
Jamais alguém a chamou pelo seu verdadeiro nome, o nome perigoso é portanto, somente murmurado à noite, com pesar ou cobiça, ao fundo das obscuras canas dos arrozais. Fiel a sua política submissa, Tong-Doc a chama Ana, como a uma filha europeia. E é também por Ana que a tratam o clã privilegiado dos tenentes e dos professores que vêm ao palácio somente para jogar tênis com a filha de Tong-Doc e receberem em seguida, dessa pequena mão morena, uma taça de chá adoçado à inglesa, com o creme e os bolos, pois a senhorita Ana professa algum desprezo pelo chá de Yunnam. — Uma tisana de água quente, meu querido? — A senhorita Ana sorri e faz a reverência, — ela foi educada num convento; — reclinando os admiráveis cachos do seu penteado de jovem escolhida ao vice-residente. A senhorita Ana flerta enfim, flerta muito, e dessa galantaria, se sabe que dois dos ajudantes-de-campo do governador começaram, dizem, a se enervarem do seu jeito. Tudo pesado, a senhorita Ana difere muito pouco de não importa qual mademoiselle Ana de Paris ou de Londres; e alguém até se enganaria, não fosse o traje oriental, enfeitado de argolas de ouro presas na seda negra e as sandálias anamitas, que revelam um inconfundível pé asiático. Mas não se trata, entretanto, da bela diferença, mas de algo pálido — muito hábil, muito artificioso, misterioso. Não importa, a filha de Tong-Doc verdadeiramente esqueceu a sua raça e anulou o seu destino. Ela ignora a linguagem antiga do império e quando ela fala desses que são seus vassalos, ela diz: — Os indígenas.
Quatro horas. Hoje não se jogará mais o tênis, pois dois coronéis de bigodes brancos vieram saudar amigavelmente Tong-Doc. Senhorita Ana distribui suas ordens: — Não se servirá mais o chá.
— Senhorita, o que está preparando não vai nos embebedar?
— Oh!, um pouco, meu coronel! É um coquetel de minha criação. Põe-se um dedo de marrasquino, uma lágrima de scoth-wisky…
— Com bastante gelo?
— Com muito gelo! Com icebergs! Com Banquisas! Meu coronel, deixe que os prepare.
Os Képis, cinco vezes agaloados se inclinam, e o ritual está encerrado — sob os antigos cedros que assobiam.
Cinco horas, a hora do passeio. Trajando um vestido verde com fortes bordados, — jamais o amarelo, jamais o púrpura, jamais as cores imperiais proscritas! — Para o passeio da tarde a filha de Tong-Doc monta uma carruagem. A carruagem trás a marca Binder, e os cavalos são dois australianos, — a raça soberba, da qual não vi mais nenhum sob o céu da Indochina. Dentro da cidade, usam a equipagem mais elegante, meio parisiense. A libré, alias é escura, sem divisas, e o verniz negro, virgem de todos os armários.
O passeio da moda é uma ala do parque, distante a uma légua, todo plano, ensaibrado de vermelho. Ao redor, a natureza asiática estende melancolicamente seu esplendor: arrozais verdes como a relva, córregos ocultos pelas moitas, altos bosques de graciosos bambus, matas de arecas e palmas arrojadas. O sol, mortal aos crânios europeus, orna-se de rubi e de esmeralda para acentuar de nuanças todo esse verdor úmido. Durante muitos séculos, os imperadores letrados, invisíveis atrás de palanquins de ouro puro, passearam sua desdenhosa indolência por essas sombras preferidas.
A carruagem de Tong-Doc se junta às outras carruagens do passeio. Duas filas de veículos sobem e descem a ala ao passo lento dos cavalos. Os vestidos claros, as sombrinhas alegres, os braços nus em meias-luvasbrancas, e o sol no horizonte, mais forte por seus raios oblíquos, formam uma visão da Europa, uma visão luxuosa de Armenouville ou do Hyde-Park. — A túnica verde bordada com filigranas hieráticos, tom sobre tom, dá para a cena um toque de exotismo discreto. — Na cena, senhorita Ana trás negligentemente seu guarda-sol e lança jocosas olhadelas aos cavalheiros diligentes que a saúdam! — Cá e lá as mãos se agitam, e as moitas estremecem, soltando ao vento vozes de crianças. E quando a noite se precipita, riscando de negro o poente ruivo como a pele de um tigre, as carruagens prontamente retornam à cidade. Mas, na luz das lanternas, os retardatários distinguem então o sorriso divertido da filha de Tong-Doc, fixo até o fim, o sorriso muito distante, na verdade, do ricamente eterno, que gesticula ao fundo dos pagodes, nos ídolos imperiais esquecidos.
Dez horas, a hora do teatro. O proscênio esta florido com uma colheita de rosas. A filha de Tong-Doc escuta Samson, com o semi-recolhimentoque se recomenda. O pequeno binóculo de nácar mira asvezes o tenor ou o contralto, mas mais frequentemente, esquadrinha os camarotes e detalhadamente, suas roupas.
Nas luzes, a formosura esbelta e castanha da nobreza asiática resplandece. O robe suntuoso ganha intimamente quadris de mulher e cintura de fada; o busto orgulhoso e pouco volumoso, o pescoço delicado mais parece de algum metal ignorado, mais claro que o bronze e mais precioso que a prata. As mãos magras à força de delicadeza, os braços inegáveis e até o olhar enigmático, apesar de mortiços, de dois olhos puros e frios, em tudo evoca o pensamento de uma estranha estátua antiga, modelada por um mestre apaixonado pelo misterioso e pelo incomum. Mas sobre toda essa máscara atávica, a educação recente a colocou numa mascara nova; e o sorriso, e o olhar e os gestos são ajustados para transformar a princesa mais longínqua em uma parisiense toda moderna, que mal se distingue sob seu robe oriental.
Na porta do camarote, dois golpes são discretamente batidos. É a visita do chefe da casa militar, um tenente coronel muito jovem e galanteador. Cumprimentos, reverências, dedos beijados. Desta feita, Saint-Seans fica injustiçada. Entra-se, se instala, se conversa, se ouve música. — Como em Paris.
E agora é noite, — a noite pesada e cintilante, — a noite da Indochina, quente como um dia de verão. A filha de Tong-Doc volta para o seu yamem. A cidade adormece, debilitada. Nas avenidas silenciosas não há mais ninguém para contemplar a fila violeta das luzes elétricas iluminando a cortina de árvores verdes.
Solitárias, apenas as espeluncas de ópio, na orla da aragem negra, avermelham vagamente à noite. Espeluncas de prostituiçãosobretudo. As portas baixas revelam vagos fumadores miseráveis, terra batida, fracamente amassada, madeira quebrada, esteiras podres. Dois quintos de petróleo empestando o ar já insípido. Ao fundo, quatro nichos fechados, que numa claridade vacilante abrigam casais com humor lúbrico. Na terra, a lâmpada, o cachimbo e a agulha atendem o fumante. Mas quase já não há mais ninguém que venha fumar, um ou dois marinheiros livres, ou algumas vezes um grupo por diversão ou simplesmente para se chapar.
Mais longe, atrás do palácio de Tong-Doc, na pequena caserna vela um sentinela. — A boina plana se assenta sobre os cabelos bem penteados, e o fuzil repousa no antebraço direito. — Subitamente, alguns passos miúdos estalam em contato com a areia e, silenciosamente um batente de porta volta-se sobre seus eixos. Uma forma morena passa,a forma de uma mulher que se evade do palácio. Entretanto, a sentinela nada vê, nunca vê, pois ela permanece impassível e muda, atenta somente às moitas que margeiam o caminho da ronda.
No extremo do cais do arroio, entre as últimas canas baixas que cheiram a pó e a podridão, a última luz de ópio abre sua boca terna. Três meretrizes, — jovens ou velhas, pois não se distingue muito, — estão agachadas ao lado de um rapaz equivoco, e as garrafas de aguardente de arroz enchem as taças sem asas. E também, por certo, a chaleira para o chá fumega num canto.
Ora, a porta vermelha se abre, e quem entra? Uma mulher jovem e bela, muito elegante na simplicidade pobre do seu robe escuro. E ali se passa uma coisa inteiramente bizarra. As prostitutas e o lugar, de ordinário sem cortesia e lento nas saudações, se levantam em presteza, juntam as mãos e curvam a cabeça, selando um rito de profundo respeito. As frases se trocam, frases anamitas do mais puro dialeto. — A visitante ordena em modos breves — os hospedeiros balbuciam humildes comprimentos e oferendas servis. E precipitadamente, o aguardente é deixado de lado, um candeeiro se acende e o cachimbo se aquece à chama. Uma das meretrizes trás ao joelho a primeira chávena, um chá verde de Yunnam, que se distingue dos grosseiros; e o ópio sobre o candeeiro começa seu engorduramento misterioso.
Mas com um estrondo a porta se rompe, e um grupo ruidoso se precipita, um grupo travesso que retorna de um jantar e que procura uma pândega. Eles são dois oficiais, dois funcionários públicos e dois magistrados, o resumo perfeito do ocidente invasor, a própria essência da Europa, sempre incitando a morte, sempre essa barbárie ocupada e grosseira, a que a sabedoria indolente e sutil do oriente foi vencida. Toda essa gente tumultuosa penetrou no recinto com fulgor e exclamando em voz alta:
— Que horror! Que podridão! — Eis aqui aquela esparrela de que lhes falei. — Que vício sórdido, entre esses selvagens!
A visitante, alongada defronte a lâmpada, com o cachimbo de bambu em sua mão frágil, não dignou voltar a cabeça.
— É preciso ter coragem para se deitar nesse lugar!
— Você não viu ainda as bestas! Esta noite, elas parecem quietas.
— As bestas?
— Sim; as baratas, as lacraias, as formigas, as aranhas, as centopeias, os escorpiões, e eu nem sei o quê mais… Elas regem aqui em plena onipotência. E durante o dia ficam aí onde estão agora as esteiras — Pouah!
— Ei, e quem é essa congai que fuma?
— Uma bonita meretriz, mas parece que eu nunca a vi.
Impassível, a fumante aspira lentamente a fumaça negra, e seus olhos absorvem fixamente o vazio. Pode ser que ela não compreenda nada, mas são muito poucas as mulheres da cidade que não compreendem nenhuma coisa da língua dos senhores.
— E então, pequena? Preciso ver o teu nariz.
Esse que fala é um dos primeiros de sua raça por nascimento e saber. Italiano e francês. Tudo junto, poeta, doutor e soldado, ele resume harmoniosamente a delicadeza e o espírito de dois povos, o orgulho e a sabedoria de três castas. Mas é, entretanto, em presença do Extremo Oriente, como uma criança diante de um enigma complexo.
Ele se aproxima da fumante e com o dedo a toca no ombro. Ela, friamente, o contempla, deixando apenas a incógnita entre eles.
— Vejam, ela é gentil… — Como se chama? Não diz nada? — Ela não fala francês, é uma pequena selvagem. Veremos… — Deixe-me ver teus peitos… Ora, vamos, isso é uma coisa permitida num ambiente desses… Eles me parecem muito bem feitos… Há não? Não tão longe? A teu prazer minha querida. Você é excelentemente bem feita, sabias?
— Ah, estou pensando! — Você não imagina minha querida que é o próprio retrato de Ana, a filha de Tong-Doc? — Mas creio que ela é alguma coisa… Mãos finas demais para o povo…?
— Dama, aqui?
— Ela é igual, só que bem melhor que a maioria. — E você boba, se aproxime!
— Quem é essa, está recente como pensionada?
A mais velha das prostitutas ri, com sua grande boca obscena fendida sobre seus dentes negros. Ri num riso gritado e tão estúpido, que sobre aquela pessoa o mundo jamais suspeitaria uma zombaria e uma brutal emboscada. Depois da confusão ela explicou.
— A visitante chegou ontem, ela vem lá de baixo. — Lugar impreciso, gesto vago. — Ela se chama Thi-Nam, — um nome bem vulgar, — à menos que isso não os enfade…
— Aqui não se enfada. Pode-se comprar este objeto de arte?
Louco riso, de mais em mais gritado e estúpido. As três meretrizes se dobram em duas, contorcendo-se de riso. — Não se pode, é a coisa mais impossível do mundo! Thi-Nam é inviolável, no sentido muito preciso da palavra. — Por quê? O capitão vai saber? Ah Deus! Porquê! — Gesto ignóbil. — Esse anjo de beleza não é, ai de mim, uma ovelha perdida, muito perdida. Thi-Nam está doente, e o excelente capitão não há que insistir um pouco para ganhar o lugar que tem a mais admirável sífilis de todo o país. Perfeitamente, esses lábios corados, esses olhos negros com o clarão da prata, esse pescoço orgulhoso e claro, — Tudo aqui, tudo apodrecido!
— Hein?
— De verdade, meu querido! Deixo-lhes então as pequenas, que são meninas com um ar melhor. — Honesta a sua maneira essa velha feiticeira. Pois ela tem medo que o serviço dos costumes venha a se ocupar com ela, e olhe então a pequena!Aqui ela é rudemente igual, seria uma revelação pública! Uma branca morrendo de vergonha, e as mulheres daqui são como as chinesas, pobre raça!
— Então, nada a fazer nessa lama. Partimos?
Eles saem, por último o francês, filho de italianos, que se detém junto ao umbral e olha ainda. Ele advinha obscuramente muitas coisas misteriosas entre esses quatro muros enlameados, muitos enigmas dissimulados nessas frontes morenas que pensam outros pensamentos, diferentes dos pensamentos ocidentais. Mas mesmo assim, ele sai, depois de ter hesitado. E a suspeita, nasceu de uma verdade inverossímil.
A porta é novamente fechada, os ferrolhos gemem com a ferrugem. E a matrona repugnante precipita-se então de joelhos em terra e se prostra com a cabeça de encontro às esteiras. — A Santa Princesa, a Sucessora da Cidade, a Reservada, — por direito de raça — ao Leito Imperial, a filha de Tong-Doc que outrora chegou a Sétimo no império, a Inegavelmente Virgem, perdoa-me!, perdoa mais essas três pequenas escravas, vis como o excremento dos sapos, à blasfêmia proferida?! Concede perdão a essa criminosa que para salvá-la do ultraje dos bárbaros, ousou sair de sua própria ignomínia? — As prostitutas e o morador tremem,as mãos juntas e a fronte no lodo. Duas lágrimas correm,não mais hipócritos gemidos que raiam a brutalidade dos opressores: duas lágrimas amargas, quentes de horror e de indignação.
Impassível, com o desdém hierático dos ancestrais ressuscitados intactos nos seus olhos, a filha de Tong-Doc olha seus súditos e não diz nada. Somente um estalo de língua impaciente lhe escapa: o cachimbo está vazio. Timidamente, as mulheres se apressam. E novamente a fumaça negra sobe e se dilata pela fumaria silenciosa.
O odor mágico se expande e flutua. Começa impregnando as esteiras, depois a terra, as paredes e por fim as vigas do teto.
E misteriosamente atraídas, inumeráveis bestas saem de cada fresta e de cada canto, e avançam pouco a pouco ao redor da lâmpada.
Pois a nobre droga estende sua realeza sobre todos