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As Duas Almas De Rodolphe Hafner - Claude Farrère



AS DUAS ALMAS DE RODOLPHE HAFNER

À Henri de Régnier

De fato, Rodolphe Hafner teria mesmo duas almas? A mim, parecia claro, mas eu sei que é uma suposição bem barroca. Toda espécie de coisas respeitáveis como a religião, a filosofia, parecem estabelecer o contrário, de que ele jamais poderia ter mais que uma, e além de tudo, segundo a doutrina; — uma alma, ou nenhuma alma. Mas duas, é ridículo e louco.

Assim mesmo, eu creio que Rodolphe Hafner possuía duas almas que habitavam seu corpo uma após a outra. Para dizer a verdade, a primeira não era talvez muito boa para ele. Teria sido nesse caso uma espécie de alma errante, substituindo momentaneamente, por uma força dos poderes ocultos, à sua própria, a segunda. Se as coisas se passaram assim, essa alma errante, erra sem dúvida ainda hoje pelo mundo, em busca de um novo corpo que a acolha. Eu gostaria de a reencontrar, mesmo com o risco de perder minha própria alma para essa substituta, — tão eu prezava singularmente a primeira alma de Rodolphe Rafner.

Foi com essa alma que eu o conheci. De fato, onde o encontrei primeiro? Eu não sei mais muito bem. Nós passamos longos tempos percorrendo o mundo juntos. Por outro lado, minha memória torna-se verdadeiramente malvada depois que fumo o ópio indiano em lugar do chinês. — Não importa, eu me lembrarei de tudo em sua hora. Mas aquilo de que eu estou certo, é que foi em um país crioulo. Senhores, vocês não sabem o que são os negros. Seres moles e indolentes, que vivem em redes se balançando sob palmeiras? — Não, não é nada disso! Eu não vou explicar o que é, pois isso me fatigaria. — Ah, eis que me recordo: eu vi Rodolphe Hafner pela primeira vez em New Orleans, uma cidade muito vibrante. Eu estava lá há oito dias, vivendo na ociosidade. Uma noite, no salão dos Routh, intrépidas pessoas da St. Charles avenue, a filha da casa, que era minha amiga, me ofereceu para o dia seguinte um passatempo de prazer assaz raro: ela fazia uma lista para um regulationring; (essas pessoas falam o inglês como as vacas espanholas). Eles anunciavam o combate singular de duas jovens mulheres, duas mulheres do melhor mundo, aliás, prontas a decidirem uma pequena diferença a golpes de murros, perante um círculo de amigos e amigas. Essas matinês crioulas dos ianques são surpreendentes. Eles não podem fazer nada a portas fechadas, nem mesmo se agarrarem pelos cabelos. Então minha companheira me deu os detalhes. Isso não era só mais um simples desafio esportivo, um pouco extravagante. Não, era uma verdadeira batalha para que vencesse a melhor. Ódio, ciúme, traição, eu não sei ao certo; e desafio a princípio. Pior, luta sem piedade, forte, comovente e provavelmente feroz. Naturalmente eu tive que ir.

De fato, foi feroz e emocionante na medida dos desejos. As duas combatentes se assemelhavam como duas gotas de água, mesmo tamanho, mesmo cabelo de ébano, mesma tez resplandecente e quente, mesmos corpos vigorosos e ágeis, mesmos perfis sensualmente animalescos e graciosos. Esse é o tipo único da Louisiana crioula, muito sedutor aliás. Elas se atacaram furiosamente, à inglesa, com as mãos endurecidas por grossas luvas de boxe, e a cabeça e a garganta nuas. — Elas vestiam roupas usadas da ópera cômica, idênticas, um uniforme para amassar: maiôs de seda negra, com feixes de cetim bufantes e pequenas blusas claras guarnecidas de um pequeno rendado. Em um quarto de hora, tudo ficou em farrapos. Elas se batiam como surdos enraivecidos a se desfigurarem. Duas francesas teriam terminado em um fechar de olhos, e se fosse preciso, com uma crise de nervos. Elas se aplicaram pacientemente sessenta e cinco minutos contados, — seis rounds sem resultado, no sétimo o nocaute. Fútil dizer que desde o segundo round o espetáculo foi mais repugnante que uma briga de cães. As duas faces inchadas, sangrantes, lamentáveis, os seios pisados, os ombros riscados de azul e negro, e elas continuavam a se martelar com todas as suas forças, sem gritos, sem lágrimas, como os selvagens que eles foram. E como eu me voltei para o outro lado, enjoado, vi um pouco à distância, atento certamente, mas sem esse vislumbre de ferocidade que brilha em todos os olhos crioulos ou ianques, um homem magro e elegante, imberbe, cuja fronte curvava-se branca como marfim sobre os soberbos cabelos negros, e cujos olhos esplêndidos, azuis safiras, possuíam o reflexo metálico de duas lâminas de aço.

Eu era nessa época muito impulsivo, sem nenhuma defesa contra minhas primeiras simpatias. Rodolphe Hafner me conquistou no mesmo instante, tanto que fui direto a ele e lhe estendi a mão.

— Por que — disse eu. — Olha essa coisa repugnante?

Ele me considera por alguns instantes, sem nenhuma surpresa. Depois, voltando seus olhos ao ringue:

— Esse é um prazer civilizado, — diz ele, — de perceber o instinto primitivo mais a nu.

E ele aperta minha mão.

No instante seguinte, minha colega, a pequena Routh, que devora com os olhos as duelistas, entrelaça seus dedos com os meus, nervosamente. Esse era o momento de um corpo a corpo trágico, e na pressão dos dedos da criança, eu senti toda a sensualidade sádica exasperada pelo brutal espetáculo. Hafner me havia apertado a mão mais fortemente ainda, mas no aperto dele não havia nem sensualidade nem emoção. Ele estava rigorosamente calmo e dono dos seus nervos. Nossas mãos se estreitaram fortemente por simpatia somente, simpatia mútua e repentina. O que fez, aliás, entre nós, desde aquele minuto, uma amizade extraordinariamente íntima que durou por muito tempo, até a nossa separação.

— Que bizarro, — me disse ele ao cabo de um instante, desta vez sem deixar de olhar a batalha. — Tudo isso não é em suma senão um corolário das leis de Newton.

E é certo que se qualquer outro me tivesse dito essa frase elíptica, eu teria sorrido sem compreender. Mas desde que Hafner a pronunciou, ela se esclareceu instantaneamente em meu cérebro, como se me fosse comunicada por algum sortilégio oculto, desde a dedução mental da origem até a sua conclusão. Eu estava certo que foi o ciúme que havia posto uma contra a outra das duas desafiantes na arena, e que, o ciúme não era outra coisa senão um corolário do amor, podendo sem paradoxos conectar-se à atração dos sexos, forma inestudada da atração universal, e de tudo isso que se passava entre nós. O silogismo me pareceu evidente, — incontestável, e eu respondi muito sinceramente.

— Por que bizarro? É natural.

Nossas mãos ainda não haviam se desprendido. Novamente eu senti seu aperto, familiar dessa vez. E o pesar que levantava em meu coração, se dissipou estranhamente a esse contato. Uma parte da sua calma me penetrou. Uma misteriosa troca de eflúvios cerebrais se fez entre nós. E eu pude contemplar como ele, sem paixão e com curiosidade. Houve uma trégua. As duas rivais ofegantes molhavam-se com esponjas e limpavam-se como os animais de esporte. E me pareceu que seus olhos olhavam para nós. Isso não foi mais que uma impressão. Logo em seguida voltaram-se face a face. Esse foi o último round. Deus sabe que um rounda nocaute é particularmente hediondo, ainda que eu olhasse sem esforço, como Hafner. Esse não era mais um combate, mas sim uma execução. De antemão, o vencedor já estava designado, e ele não fazia mais que abater e de bem saciar-se com o sofrimento. Eu vi uma das rivais, embrutecida e obstinada, tropeçar duas vezes sob os golpes triunfantes que lhe caiam sobre o rosto. Eu vi seus punhos abandonarem a luta; seus cotovelos tentarem frente a sua fronte a suprema defesa do instinto, o gesto patético da menininha que tenta se esquivar de uma bofetada perversa; e finalmente seu corpo desfalecer, dobrar-se e cair sob o golpe fatal que lhe arranca um gemido de animal dilacerado. Isso foi o fim. Conduz-se a vitoriosa, somente um pouco menos machucada. E eu dei novamente o braço a miss Routhque palpitava.

Mas Hafner não me deixou mais. Ele quis ser apresentado à filhinha.

E eu percebo somente agora que não sabia nada dele, nem mesmo seu nome. Ele em seguida se apresenta: — Rodolphe Hafner, estrangeiro. — Ele não me disse mais nada. Não me surpreendi pois sempre achei burlesco o costume dos homens que minuciosamente nos informam da ocupação da qual eles são escravos, e do leito no qual, outrora, seu pai deitou sua mãe sobre o dorso. Como se eles tivessem ali algo do que se glorificar.

Nós comemos caranguejos juntos, no Chez Mers, conhecem? A cervejaria do bairro inglês. E eu o ouvi conversar pela primeira vez. Sua conversa era de um charme inexprimível. Não a loucura artificiosa dos espirituosos, nem as frases desenvolvidas e substanciais dos profundos. Não, mas de uma graça, uma ligeireza, uma poesia de sonho, com isso ou aquilo, ao acaso das ideias, um paradoxo desconcertante, uma verdade sublime e nova, uma crueza inesperada e aceitável, e, a cada ângulo do pensamento, o incomum e o indecifrável, o mais além. A conversa de um fantasma que seria poeta, filosofo e homem. Aliás, eu não conseguiria dar a sensação justa, e tudo isso que escrevi não se parece mais que uma careta de macaca ao sorriso da Gioconda.

Quase imediatamente ele nos deixou, — eu digo quase imediatamente porque isso se pareceu assim; na realidade, nós ficamos juntos até a noite.

Ele nos deixou para ir, diz ele: — fumar uma meia hora antes de voltar para casa. — Ele jantaria na cidade.

— Em casa de quem? — Perguntei eu sem discrição e sem nem mesmo pensar que isso não me dizia respeito.

— Em casa de Madame B., — disse ele sem hesitar. — Aquela que se bateu há pouco.

E ele se foi, após me ter marcado um encontro para a noite. Desde que ele partiu, constatei que miss Routh estava amorosamente louca. Ela o via pela primeira vez e estava vivamente interessada. E ela foi realmente sua amante, três dias mais tarde, quase por força, pois ele não a queria.

* * *

O poder sedutor desse homem era realmente prodigioso. Desde a primeira noite, eu soube que as duas mulheres do regulationring estavam se batendo por ele. Ele me confiou sem mistério nem fatuidade. Não que fosse indiscreto, mas desde então não éramos mais que um em dois corpos. Nessa primeira noite, ele me recebeu em sua casa, na sua fumaria de ópio, um santuário que jamais abria a quem quer que fosse. Contrário ao gosto de todos os fumadores que eu conheci, ele somente apreciava fumar só. Extraordinariamente nós fumamos a dois, mas não houve em verdade nenhuma troca: nossos dois pensamentos estavam tão bem aferidos um ao outro, que nós não tínhamos necessidade de falar para entendermo-nos. E o silêncio da fumaria não foi perturbado, apesar do intercâmbio constante dos nossos assuntos.

E nós éramos todos, o um e o outro. Quando eu digo todos, pretendo falar de um todo intelectual e sentimental. Pois essa vida exterior, suas relações, seus antecedentes, sua fortuna, seu país, jamais me interessaram. Mesmo seu físico nunca me foi familiar. Hoje, quando eu procuro me recordar de sua silhueta, tenho consciência de que o que revejo é o perfil do último Hafner, do outro, e não desse que foi anteriormente meu amigo absolutamente íntimo.

Ora, o segundo Hafner; — no qual se alojou essa outra alma, eu o vi por duas vezes ao todo e, por conseguinte, os explicarei a sua hora.

Mas o primeiro, é em meu ser e não em meus olhos, que se imprimiu indelevelmente. Quase três anos inteiros nós não nos separamos nem por uma semana. O que se seguiram de acasos inquietantes por força dessa concordância, eu não poderia mais enumerar. Sua carreira, — de fato, eu só saberia dizer que era qualquer coisa dentro das embaixadas, e aliás, foi por acaso que eu soube; — o levou caprichosamente pelas cinco partes do mundo. Eu, eu não tenho nem profissão, nem pátria e nem mesmo assim ele me confiou alguma região, algum continente, nem um mar além dos que nos dois vimos juntos, talvez para que agora eu não os associasse à sua lembrança. E se verdadeiramente sua alma, sua primeira alma, frequentou os lugares que ele visitou outrora, é no mundo inteiro que me caberá procurá-la.

Em toda à parte, a fumaria de ópio nos seguiria, a fumaria da primeira noite. Vocês podem bem pensar que eu já havia visto as piores fumarias. Mas eu jamais vi coisa parecida. As fumarias habituais são quartos quase nus, atapetados de esteiras mais ou menos chinesas, ornamentadas de lanternas, biombos ou para-sóis, e grandes o bastante para que caibam quatro ou cinco pessoas. A nossa parecia uma tumba, e nossos dois corpos precisavam ficar deitados costa a costa para caberem. Ela era em vime, com arcos e tecidos estendidos sobre o vime. Isso se levava, desmontado e dobrado em uma caixa pequena. Nenhuma esteira, somente um tapete de Aubussom. Nenhum ornamento chinês, a não ser a seda com relevos que se arredonda num arco baixo e recai como muralhas ao redor dos fumantes. — Hafner professava que o ópio não é chinês, mas universal. — Essa seda bordada se impregnava rapidamente da fumaça negra. As volutas, aprisionadas no espaço estreito, se saturavam dos odores e da embriaguez, tão bem que após alguns cachimbos, nós não precisávamos mais fumar: o ópio revolvido se mesclava à nossa respiração para penetrar nos pulmões, e o sonho divino nos visitava sem mais esforço.

Por consequência, esse não seria para nós dois, o mesmo sonho?…

O ópio agia singularmente sobre Hafner. Algumas das sensações habituais não correspondiam as suas. E portanto, essas sensações habituais são multiformes, — eu desafio aqui todos os fumadores, pois é uma estranha audácia falar do inédito a propósito do ópio. Mas na verdade, Rodolphe Hafner, mesmo nisso, não se parecia aos outros homens.

A droga não lhe concedia a embriagues, — a embriagues normal que nos fixa deliciosa, mas irresistivelmente a terra, ainda que mais ligeiro, mais dócil, mais sutil que um espírito puro. — Se Rodolphe Hafner permanecia frequentemente horas inteiras na fumaria túmulo, era para seguir nos caprichos ondulantes da fumaça negra, o voo ativo dos seus pensamentos. E desde que lhe agradasse, ele podia, sem sofrimento e sem náusea levantar-se, vestir-se e partir imediatamente a seus afazeres.

Por consequência lógica, o ópio lhe negava a exteriorização, esse dom maravilhoso do fumeur de evadir-se por uns tempos da vida, da época e de si mesmo; de não ser mais um indivíduo, mas uma parcela infinita de matéria pensante, estranha a todos os corpos, e contemporânea, pela sua fantasia, à Cleópatra ou ao século XXX. Hafner era sempre Hafner. Mesmo sendo um Hafner mais perspicaz, ou melhor pensador. Tal dentro da fumaria, tal em qualquer parte. O ópio permanecia nele em um estado latente. Menos enérgico, menos fulminante, mais durável. Já vi Hafner se privar do ópio doze horas inteiras, — doze horas! Assim, eu não t



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