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Claude Farrère — Fumaças de Ópio – O Pesadelo

O PESADELO

Este é o fim, o fim de tudo…
Já fazem oito, nove, — quantos? — Quarenta dias? Que não consigo comer, — que nem um gole de chá passa pela minha garganta; havia, no começo alguma coisa que o impedia, alguma coisa, na borra, no ópio, eu não sei. Fazem quarenta dias ou quarenta meses que eu não bebo nem um gole de chá…? Nem que seja o que for, naturalmente… e quantos anos, que eu não durmo?
Eu não sei mais. Eu não sei mais nada. Mais nada.
Ora! Para saber, para contar, para obter uma certeza qualquer sobre não importa o que, se faz necessário a verdade? Ver, ouvir, ou sentir, — usar enfim disso que os homens chamam seus sentidos, seus cinco sentidos. Cinco? — Só cinco? Pouco importa, o resto. — Sim, se faz assim. Mas eu, eu não tenho mais os sentidos. Já faz, na verdade, muito tempo que eu não tenho mais. Eu não vejo. Eu somente contemplo a lâmpada e o ópio amarelo que encrespa e borbulha sobre ela. Eu apenas contemplo a noite, arregalando meus olhos (horrorizados) para os forçar a ver isso que os homens não vêem mais, — o lado de lá, o mundo apavorante e pálido dos fantasmas; — meus olhos os vê a todos e é por isso que agora, eles não vêem mais nada, — salvo a lâmpada, a lâmpada do ópio. — Sim, os fantasmas… Dê fato, isso não é verdade, não existem fantasmas: porque eu já cessei de vê-los. Uma alucinação, uma alucinação disparatada, eis tudo. Eu sei bem que não existem fantasmas, pobre de mim! Não há nada. Há apenas o Nada…
Também não ouço mais nada. Ouvi demasiado os ruídos do silêncio, os ruídos que ninguém jamais ouviu, além de mim, que vai morrer; — os ruídos do ar imóvel, e da terra que repousa, e dos infinitamente pequenos que vivem e que morrem. E o burburinho de tudo isso enterrou-se tão formidavelmente em meus ouvidos, de modo que eu não preciso mais de tampão. Agora, nenhum som de fora penetra em minha solidão. E somente meu cérebro clama e urra em meio a meu crânio, — mas tão forte, que tudo se quebra em mim e me desmancha e me retorna em poeira; nessa poeira que em breve serei.
Diga, — esta poeira, — acredita que ela cheirará a ópio? Não? Eu porém fumei muito. Trezentos, quatrocentos cachimbos por dia; mais, quem sabe?
Eu não vejo mais e não ouço mais. Assim é tudo. E não há uma sensação humana que me reste e nenhum ato humano que eu possa fazer. Nem um, nem um. Nada. Ah, mas sim, uma coisa, um verbo: sofrer.
Oh, o sofrimento que eu sofro! Oh, o fogo que dilacera e devasta e tinge de branco minhas entranhas! Dentro de mim, uma chaga arde, uma chaga que começa em minha garganta e termina mais baixo que os meus tornozelos; uma chaga que não perdoa nada, nem veias, nem intestinos, uma chaga de onde, perpetuamente, jorram as chamas. Os rios, os lagos, o mar, todos os oceanos podem correr sobre essas chamas e não as apagarão. E isso é para sempre, sempre, sem pausa, sem prazo, sem sono. Até o nada, ao nada mais assustador…
Sob minha pele, o comichão do ópio me ha mordido tão forte que eu não tenho mais epiderme: eu a arranquei a golpes de unha, inteiramente.
E se isso era tudo! Sem isso não haveria nada mais!
Ele teria a sede e a fome do ópio. Dias e dias passei sem comer e sem beber, isso não é nada, menos que nada; — uma volúpia. Mas uma hora sem ópio, aí está, aí está o horrível, a coisa indizível, o mal de que não se cura. Não se cura, porque para essa sede não há saciedade. Antes de fumar, eu morro da falta de ópio, eu morro ainda, depois e durante e sempre. Meu corpo agoniza desde que abandona o cachimbo. Mas, desde que eu prossiga, uma outra agonia se abate sobre meu corpo. E estou condenado a repousar na brasa ardente, encontrando somente o chumbo fundido.
A condenação. É aqui, é aqui mesmo. O inferno onde eu estou por essas duas penas. Ao sofrimento dos sentidos se ajunta o dano. Ao mal da carne, o mal do espírito. Ao fogo, o pesadelo.
Logo, — que há muito tempo! — Eu não terei mais que sonos breves, prostrações de algumas horas, de alguns minutos, entre duas embriaguezes; — sonos fulminantes, prostrações completas, de onde eu me levantarei mais cansado que do mais violento aperto de amor; — sonos reais, livres de imagens, livres de fantasmagorias, sonos fechados aos apavorantes do lado de fora. Pois, está chegando o dia das letargias febris, delirantes, repletas de sobressaltos, de atrocidades, de apocalipses. E se estabelece então uma sorte de proporções espantosas: a medida que o ópio abreviava, encurtava meus minutos de repouso, — pois, isso ainda era um repouso, quase, — o mesmo ópio os enchia, me cumulava, me estufava de mais espantos, de mais atrocidades, de mais apocalipses. Até ao limite super-humano de certa série que ainda matemática não se somará jamais: o limite que reduz a zero o sono, e a porta do pesadelo a um valor inverso, um sobre zero, ou seja: o infinito.
1÷0 = 
E eu não durmo mais. E o pesadelo, excede os limites mais fechados do meu sono e se derramou em minha insônia. Eu sonho o tempo todo. Isso é o mais atroz.
O pesadelo. Ninguém, fora os fumantes de ópio, sabe o que é um pesadelo.
Eu sei de pessoas que dizem: essa noite eu tive um sonho pavoroso: as paredes me esmagavam chegando cada vez mais perto. Ou também: eu caía de um precipício. Ou então: eu via minha mulher e os meus filhos sendo torturados sem que eu pudesse socorrê-los. — Essas pessoas colocam suas mãos enfrente os olhos e dizem com horror: que pesadelo!
No meu pesadelo, para mim, não há nem precipício, nem paredes, nem mulheres, nem crianças. Não há nada. Ele é vazio, de nada e de negro. Ele é a assustadora realidade da morte; — tão próxima, tão próxima, que o condenado que aguarda sua guilhotina não vê a eternidade de tão perto como eu.
A morte, ao meu redor, roda e paralisa. Ela bloqueia a porta e a janela; ela se arrasta pela esteira, ela se desabrocha entre as moléculas da atmosfera. Ela entra nos meus pulmões com a fumaça negra e quando eu sopro a fumaça, ela não sai.
Um homem, aqui, está morto, de antemão, como eu. Se há jogado num poço Então, onde vai dar, de fato, esse poço?
Isso não é nada. Se jogou dentro do poço. Há uma enguia no fundo do poço. Uma enguia ou uma cobra d’água. — Ou uma cobra d’água! Você entende?
A cobra mordeu o cadáver. E ela morreu por sua vez, naturalmente. Se a pescou, porque essa era uma enguia. E o gato mordeu a enguia. O gato, entende?
O gato está aqui. Grande como um tigre, — naturalmente. Mas com uma cabeça de gato bem pequena. Ele vai morrer. Ele ronda ao redor da lâmpada. Mesmo assim, ele ronda; em sentido inverso. Nós haveremos de nos reencontrar… nos reencontrar
Ah! Ah! Ah! — Socorro!…


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