Get Even More Visitors To Your Blog, Upgrade To A Business Listing >>

Augusto – A Fábula de um Cotidiano Corrosivo

Dor de estômago, crise de ansiedade e tremedeira constante são as 3 coisas que me atormentam praticamente todas as noites. Agora me sentei aqui na máquina de escrever pra comentar que eu sei que não devia ter tomado aquela xícara de café antes de deitar, mas eu estava ansioso pra beber aquele líquido preto amargo cheio de sabor e agora acabei ansioso por ter tomado aquela água suja sem gosto que me estimula a ficar acordado. Eu também sei que não devo repetir hábitos que me fazem mal, mas são vícios doloridos de deixar. Aliás, existe vicío confortável de largar? Não é cômodo abandonar qualquer situação em que permanecemos longo tempo. Se adquirimos costumes de nos matar aos poucos tomando café, ingerindo açúcar em demasia, assistindo televisão, alimentando amores vazios, bebendo cerveja no bar sujo da esquina ou desperdiçando tempo com conversas sobre o clima com o vizinho de condomínio, sempre será angustiante ir na contramão desses hábitos por mais que tenhamos consciência do quão corrosivos eles são ou podem se tornar. Constantemente me pergunto porque comecei a fumar mesmo sabendo que o tabaco é viciante e toda aquela fumaça fedorenta só iria me prejudicar. Eu sei a resposta, e por mais inconsistente que ela pareça, ainda me alimento dela: me destruindo eu irei me renovar. Mas não vou me alongar dissertando sobre isso.

Eu só penso besteira. Queria mesmo dormir, mas os pensamentos se atropelam na minha cabeça e parecem se projetar na parede branca e sem graça da cozinha. Se eu praticasse exercícios eu faria algumas flexões pra gastar energia, mas sei que com meu corpo magro, esguio e nada atlético eu só iria me cansar em vão e me angustiar com a irritabilidade que iria adquirir nos músculos pelo resto da noite que eu sei que vai se alongar cada vez mais. Pesquisei algumas técnicas de concentração pra tentar me acalmar, mas nenhuma é eficiente pois no momento não possuo paciência pra tentar me concentrar. Que paradoxo medíocre. Eu tentei ler pra ver se tirava algum proveito das horas tediosas que virão, mas o Dostoievski que estou devorando aos poucos necessita de uma atenção que eu não possuo no exato momento. O que eu posso fazer pra matar o tempo? Vou tentar repassar o que eu fiz hoje. Bom, vamos lá;

Acordei tarde, era perto do meio dia e lembro que estava morrendo de fome. Fiz qualquer coisa rápida pra comer, fumei um cigarro e me joguei porta afora, indisposto pra dar uma volta com a minha pasta cheia de currículos, ignorando as olheiras, o cabelo desarrumado e a barba por fazer que repeliam qualquer proposta de emprego. Após passar em algumas lojas do centro da cidade me candidatando sem sucesso a vagas em que não me encaixo eu sentei no banco de uma praça e fiquei observando as pessoas passarem. Calor escaldante se precipitava pelas beiradas dos prédios e eu não invejava nem um pouco os homens que passavam vestidos com suas calças sociais e ternos pretos, mastigando qualquer coisa, pensando em qualquer merda e achando que o relógio caro e o cabelo curto bem penteado sustentava todo aquele ego inflado que mantinha seus narizes empinados apesar do suor que escorria e apodrecia nas dobras de suas peles pegajosas. Eu não invejava o dinheiro que eles carregavam na carteira, muito menos o tempo que eles jogavam fora diariamente em seus cargos importantes ou na academia. Eles eram todos parecidos; hommo sapiens sapiens semelhantemente vazios. Eu preferiria viver entre macacos tranquilos, me alimentando somente de bananas do que levar uma vida como a do homem moderno empreendedor, tão cheia de falsidade e sustentada por pilares de ignorância mascarada de conhecimento só porque eles leem livros que os ensina como crescer profissionalmente. Grande merda, ninguém é melhor que ninguém, mas ainda prefiro meus escritores bêbedos e desacreditados do que aquelas “obras literárias” que são escritas por babacas que criam frases prontas em uma sequência de palavras mecanizadas pra lotar os bolsos de papel.

Terminadas observações me precipitei até o mercado e com as notas amassadas que me restavam comprei duas cervejas geladas. Retornando para meu banco enquanto acendia um cigarro eu percebi que aquele lugar de contemplação em que me sentei anteriormente estava ocupado por um homem de meia idade que apresentava manchas de vitiligo na pele e vestia roupas esfarrapadas que fediam a cachaça. Finalmente eu havia encontrado um ser abençoado. Sem cerimônias me sentei ao lado dele e lhe ofereci uma das cervejas que eu havia comprado, a qual ele aceitou com prontidão e comentou que nada cairia melhor naquele calor. Eu reparei seu olhar de estranheza, é óbvio que ninguém repara nele por ser morador de rua, e um cara de 20 e pouquinhos anos oferecer uma cerveja a ele deve ser uma coisa que acontece a cada bocado de anos.

Eu, tentando puxar assunto, perguntei o que ele pretendia fazer durante aquela tarde e ele respondeu que não sabia, explicou que normalmente tocaria violão na esperança de ganhar algumas moedas ­ para comprar algo para beber a noite e talvez algo para comer se não conseguisse restos de comidas em algum restaurante ­ mas que o violão surrado que ele havia ganho de um rapaz a alguns meses havia sido recolhido por um policial no dia anterior com o argumento de que “aquilo era perturbação da paz pois ele não tinha licença para fazer aquela barulheira ali na praça e as pessoas de bem que passavam por ali haviam reclamado dele”. Aquilo sem dúvida era um absurdo e eu disse para ele que também tocava violão e como morava perto dali não me incomodaria em emprestar meu violão para ele tentar conseguir seu “ganha­pão” durante um certo tempo. Animado ele aceitou a proposta e agradeceu. Depois de terminar minha cerveja fui até o prédio onde morava e em menos de vinte minutos encontrei o senhor sentado no mesmo lugar, fumando um cigarro meio torto. Sentei novamente ao seu lado e ele brevemente tocou algumas notas no violão, elogiando a qualidade do som, então colocou seu boné velho no chão, levantou­se e começou a tocar uma música antiga do Legião Urbana. Realmente ele tinha algum talento, era ágil com os dedos e sua voz áspera de tantos cigarros e bebedeiras se encaixava bem na melodia. Ele me convidou para cantar algumas músicas antigas de bandas de rock da região e arriscou um pouco de Raul Seixas, rendendo boas risadas e resultando em uma breve conversa sobre o maluco beleza.

Foi divertido, e apesar de sua aparência exterior que repelia a maioria das pessoas, ele ganhou até algumas notas de 2 reais além das moedas que os apressados jogavam no boné. Resultado em longo prazo; um homem fardado chegou, tentou tomar­lhe o violão e disse que ali não era permitida toda aquela algazarra ­ o que ele chamou de algazarra eu nomeio de intervenção artística ­ quando eu tirei o violão de suas mãos e disse que ele não tinha aquele direito algumas pessoas já se amontoavam na volta e uma minoria dizia que aquilo era desacato e “os vagabundos deveriam ser presos”. Por fim convenci o policial de que íamos nos retirar dali se ele não levasse o meu violão, e depois de muita insistência ele se convenceu e disse que ia ficar de olho em nós.

Quando todos se retiraram de nossa volta o senhor juntou os trocados do seu boné e após me agradecer muito, me pediu, calmo, para eu não ficar encabulado com a situação, afirmando que aquilo já era comum. Declarou em tom educado que se chamava Augusto, havia sido um prazer ter aquela breve aventura em minha companhia e iria comprar algo para comer. Eu cumprimentei o senhor Augusto, disse para ele se cuidar e dei alguns passos pra longe dali enquanto observava ele caminhar em direção ao bar que tinha do outro lado da rua. Homens gentis e talentosos como esse repousam nas vielas sujas e nas calçadas tortas que você pisa, caro leitor. Eles dormem ao relento e não conseguem um emprego porque as “pessoas de bem” não os consideram “gente”. Eles são excluidos, humilhados e subjugados por aqueles homens de gravatas que passam por aí e pelo cidadão de classe média que está sentado confortável em sua couraça de ferro nomeado automóvel que leva sua pança obesa pra passear com o ar condicionado ligado. Esses dois tipos miseráveis de alma estão cheios de pré­conceitos e defendem a meritocracia. Que se fodam com seus principios individuais e insiram, coloquem, introduzam, enfiem o dinheiro naquele lugar.

Eu estava aparentemente possesso quando voltei pra casa carregando meu violão e ainda pensando no “seu Augusto”, mas o cansaço que aquele calor me impôs me fez dormir demais. Quando acordei já passava das 22, eu havia perdido meu dia inteiro naquele colchão e indignado com isso comi um pão duro e amassado enquanto pensava se fazia café. Estava meio trêmulo quando coloquei o pó solúvel na xícara e acredito que, sem perceber, enchi a xícara quase até a metade. Sem dúvida nenhuma o café estava muito forte já que fazem algumas horas que o tomei e minhas pupilas dilatadas correm pra lá e pra cá na velocidade de meus dedos que batem nas teclas da velha máquina de escrever que eu tenho no meio da cozinha. O cigarro acabou mas parece que a lua ainda vai ficar por umas 4 horas no céu. Maldição, será que tem algum bar aberto a essa hora?

O post Augusto – A Fábula de um Cotidiano Corrosivo apareceu primeiro em Dose Extra.



This post first appeared on Dose Extra | Cultura E Entretenimento!, please read the originial post: here

Share the post

Augusto – A Fábula de um Cotidiano Corrosivo

×

Subscribe to Dose Extra | Cultura E Entretenimento!

Get updates delivered right to your inbox!

Thank you for your subscription

×