A Libertação (The Deliverance)
Este é um filme de Terror gospel lançado na Netflix, que é falsamente inspirado numa história real. E sim, você leu direito, "terror gospel", repleto de religiosidade e referências bíblicas cristãs. É praticamente "O Exorcista" versão evangélica.
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Resumidamente, é como assistir um relato de um cristão, sobre como a igreja expulsou o demônio dele, mas com a liberdade cinematográfica de exagerar com efeitos especiais. E, o mais curioso é que ele tem uma construção de terror e suspense muito boa, deixando dúvidas sobre qual o tipo de terror que será aplicado. Se vai ter violência, fantasmas, sobrenatural, ou algo que subverta expectativas, Isso tudo é deixado meio de lado pra que um drama social e familiar seja desenvolvido, pra só no terceiro ato aplicarem o terror.
Enfim, falarei mais a respeito com spoilers.
Boa leitura.
Religião e Terror
Misturar religião com aspectos assustadores geralmente fere a crença alheia de alguma forma. Acontece muito com Catolicismo e com o Xintoísmo, onde geralmente uma obra cinematográfica que trata de demônios e possessões, se escora na ideia de que o padre ou o xamã são incapazes de enfrentar o sobrenatural, como acreditam que podem, e o medo nasce dessa impotência humana.
Reduz a religião a uma crença vazia? Depende... o propósito dos filmes geralmente está na aplicação do medo, sem dar muita atenção a como isso vai minar a fé do espectador. O terror é muito mais importante certo? E ninguém que curte o gênero vai pra sala de cinema esperando uma história bonitinha de como a fé derrotou o mal e ponto final.
Daí veio esse filme, que já começa com uma música gospel duvidosa, e parecendo apenas um falso terror, que quer se vender assim pra pegar o público desavisado e converte-los ao cristianismo, ou pelo menos dar uma palestra de como essa igreja é poderosa.
Estranhamente, ele consegue esse tempo, numa boa e completa execução narrativa que prende nossa atenção até o final, quando começa a vender sua verdadeira mensagem, e ai a gente já não tem mais como fugir.
Digo fugir pois, obras de teor gospel não me atraem e não são nem de longe algo que paro pra assistir. Sempre me lembro daquela musiquinha brasileira de uma mulher cantando "Quem pecar, vai morrer" pra crianças, o que é um alarde comum no cristianismo. Apesar de que geralmente as histórias gospels são leves, para confortar e conscientizar frente a religião que pregam, o que pra amantes do terror não é atrativo. O foco em toda religião e suas produções é mostrar que ela é o caminho da salvação, ponto final.
Isso porém não acontece neste filme. Ele não dita que o cristianismo é a religião certa, e que todas as outras estão erradas. Ele apenas mostra uma história que se resolve dentro dessa fé, e se basta nela. Há até citações sobre O Exorcista por exemplo, mas o filme em momento algum diz que o catolicismo está errado, nem debocha do outro filme e sua fé, apenas fala que não é a mesma coisa aqui.
Aliás, aproveitando a deixa, é bom lembrar que "O Exorcista- O Devoto" faz exatamente o oposto disso, menosprezando uma série de religiões num aglomerado infrutífero, pra dizer que o catolicismo está acima de tudo.
Não é Baseado em Fatos Reais
No final o filme alega que foi inspirado no caso real de Latoya Ammons, mas não foi não, é uma baita mentira. É só um roteiro construído pra parecer com a história dela, mas cheio de misticismo e exageros.
A história original rolou com a igreja católica só pra constar, e não tem nada a ver com o que é mostrado nesse filme. É inclusive um caso bem famoso nos Estados Unidos, no estado de Indiana.
Latoya Ammons tinha três filhos, e sofreu uma maldição diabólica aparentemente rogada por um ex namorado, em sua casa em Indiana. O caso dela virou matéria de jornal na época, a casa foi comprada e usada pra um documentário sobrenatural, e então ela foi demolida no início de 2016, quando a produção do documentário "Demon House" terminou.
Os casos sobrenaturais da casa envolviam barulhos, levitação das crianças dormindo, cheiro ruim e moscas. Esses elementos até são representados no filme, mas em contextos com justificativas reais (animais mortos, sonambulismo, etc). Muito do que rolou lá foi testemunhado por sacerdotes católicos, e rolaram até tentativas de exorcismos, que nunca surtiram efeito.
Logo, a conversão da religião aqui meio que deturba a história real, e não é honesto alegar que é inspirada em fatos reais. Inclusive, pra sustentar mais ainda que seria inspirado no caso real, muito do filme usa falas tiradas do Wikipédia, que no contexto do longa ficam sem sentido algum.
Por exemplo, em uma parte uma psicóloga alega que as crianças estavam agindo estranho por ser o que a mãe queria que elas fizessem, e isso é completamente ilógico na cena. Uma profissional jamais diria isso mediante as circunstâncias em que as três crianças foram encontradas. Mas, isso é uma frase tirada da Wikipédia que foi jogada no roteiro, pra justifica-lo, sendo que o contexto da frase é diferente ali.
Lá, é mencionado que as crianças fingiam possessões pra seguirem as ordens da mãe. Considerando que naquela época ela queria atenção da mídia, o ceticismo dos profissionais que investigaram o caso apenas expuseram as falhas e questionamentos envoltos do suposto sobrenatural.
Tudo isso cai por terra quando o filme decide abraçar os eventos paranormais como reais, simulando o que os filmes das franquias "Invocação do Mal" e "Sobrenatural" tentam fazer.
Qual a História?
Uma mulher negra, mãe de três crianças, se muda pra uma casa e vive lutando pelo pão de cada dia. Ela é uma ex alcoólatra, com o marido na guerra, que já foi presa, e tem um monte de problemas com a justiça, mas luta para manter a guarda dos filhos.
Além disso, ela cuida da mãe, que tem câncer e é uma mulher idosa branca, recém convertida na igreja. Daí o filme é sobre essa família e seus pequenos segredos, com o passado nebuloso da mãe e filha, e as três crianças vivendo seus próprios núcleos narrativos.
Só que, o que prende a atenção é que tudo acontece com furos e vazios narrativos propositais. Nada é explícito, tudo é só muito mistério e a gente fica caçando onde a história quer levar. Nem mesmo sabemos se há terror de fato, e o filme se sustenta muito em puro suspense, usando e abusando de acordes sinistros para dar a ideia de que há algo errado ali.
A protagonista (Ebony) é agressiva de mais, parece ser abusiva com os filhos, mesmo agindo como inocente depois de surtos, e a gente sente que há partes faltando na história dela.
A mãe dela luta contra o câncer, é religiosa, mas tem uma tendência a promiscuidade de incomodar, e tem cenas em que ela é esquisita de mais, como se escondesse algo.
Os filhos, cada um deles parece viver um terror individual profundo, mas o que temem nunca é explicado. Fica parecendo que temem a mãe, mas a dúvida sobre isso é crescente e a cada evento estranho testemunhado, passamos a questionar se essa seria mesmo a resposta.
Nesse quesito, o filme triunfa com o objetivo de nos segurar, mas o fato dele conseguir tal proeza não o torna perfeito.
Onde ele Erra?
Tudo desanda justamente por causa dessa forma irreverente de contar a história. Tudo é muito perdido, jogado no suspense e sem respostas, e isso se repete tanto, que chega num ponto onde já perdemos a esperança de entender algo.
O filme nunca volta pra explicar o que foi aquele lapso de memória repentino, ou o que rolou quando ninguém tava vendo. Ele apenas joga os eventos, e deixa para que nós imaginemos suas resoluções.
Pode até parecer genial, mas é algo chato na prática, e deixa uma sensação de vazio constante. É como se estivéssemos privados de assistir algo, forçados a imaginar ao invés de testemunhar, e convenhamos, o filme precisa mostrar as coisas não?!
Claro que isso não vale para o terror psicológico, que quer atingir justamente nossas ideias e nos fazer temê-las. Suspeitar de tudo, não compreender por inteiro, e temer o desconhecido, isso é parte desse modelo de terror. Só que não é exatamente isso que o filme faz no fim das contas.
No instante em que ele começa a explicar com fundos ideológicos e religiosos, dando mais respostas ao sobrenatural do que o próprio conteúdo sobrenatural mostrado, a proposta do longa é bruscamente modificada.
Quando do nada, passam a escancarar o sobrenatural, chega a ser um pouco risível ao invés de assustador. Digo mais, o filme me causou mais medo pelos seus momentos dramáticos e vazios, do que pelo terror visual na reta final.
O Sobrenatural versus o Real
Possessões e demônios assustam pela aparência, pela força imensurável que eles possuem, pelo crescimento esporádico baseado no medo dessa mesma força, e pela onipresença dessas criaturas malignas.
Afinal, são invisíveis mas podem mover objetos, podem mexer na cabeça das pessoas, podem levitar corpos, contorcionar, voar, podem de tudo, bastando apenas que haja medo os alimentando.
Não precisa explicar muito o que são, só basta saber que uma vez que tem um capeta atuando, a coisa vai ficar feia e ninguém escapa, apenas quem tiver fé. E ai que o filme começa a errar...
Ele quase inteiro nunca nem fala do demônio. Muito dele é puro suspense, e um clima negativo aparentemente gerado pela convivência deturpada da própria família. Ninguém é levado a realizar atos malignos por forças desconhecidas, muito pelo contrário, suas próprias escolhas fazem com que cometam erros e causem o mal.
Só ficamos na dúvida se isso de fato é culpa deles, por conta dos lapsos de eventos. Quando eles surtam e de repente agem como se não entendessem, nesse ponto começamos a imaginar que há alguma força sobrenatural atuando ali.
Antes permanecesse apenas na sugestão, e já estaria bom. Mas quando decidem colocar uma figura religiosa para enfrentar o diabo, com todas as respostas e armas, e o nome do Senhor como principal delas, nesse momento fica exagerado.
O problema não está na ideia, mas em como ela é mostrada. Por exemplo, a líder religiosa vai toda cheia de si enfrentar o mal, e ai sem motivo algum ela perde a fé, jogando toda a responsabilidade na protagonista.
E a protagonista, deixa a completa descrença para se converter em uma guerreira do senhor, que fala em línguas, e derrota só invocando o nome de Jesus, assim, do nada.
O demônio, antes todo poderoso e prepotente, passa a suplicar por misericórdia só porque a mulher começou a falar em línguas? Ai fica fácil de mais, sem contar que a ausência de perdas nesse processo todo tira o impacto da realidade.
Enfiam um monte de maquiagem pesadíssima nela, pra dizer que são as cicatrizes da batalha, mas ignoram as consequências reais de um evento de tamanha magnitude. Várias pessoas morreram nesse processo, e ninguém fala disso?
Quando o filme se fortalece de mensagens positivas e de superação, ele deixa de ser terror, abandona essa ideia, e abraça a categoria gospel por inteiro. Se torna uma história bonita sobre como uma mãe de família cheia de falhas, venceu o diabo e agora luta por seus filhos.
É ruim? Não, não é ruim, só não é um bom terror.
A Linguagem é Pesada
Pra finalizar, acho bom destacar que o filme usa um linguajar bem agressivo, e um vocabulário até ofensivo, repleto de palavrões.
Não é "politicamente correto" como normalmente se vê em obras gospels, e ele trata subliminarmente de assuntos bem pesados como abuso infantil, violência familiar, uso de drogas, etc.
Nada disso é explícito, e tudo é só sugerido por uma ou outra fala ou situação, mas só de ter isso, já levanta um alerta para pessoas que consomem esse tipo de conteúdo.
Além disso, ele tem algumas poucas cenas impactantes, com violência explícita, mas fora de contexto. Assusta os desavisados e não acostumados, mas quem gosta de terror provavelmente só vai achar interessante.
O que estraga essas cenas é a descontextualização delas diante da trama principal. Ver violência em uma história contada por um terceiro dentro da história, tira o impacto, e afasta o espectador pois, é tudo só um conto dentro do conto.
Enfim...
É isso que eu tinha a dizer.
See yah.