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Demônios

Tags: harry

          
“É possível dizer que todos nós somos excêntricos, já que colecionamos uma série de peculiaridades existentes apenas em cada um de nós. Duas pessoas diferentes podem ter peculiaridades parecidas, mas nunca serão, em hipótese alguma, iguais.”

Foi essa a última anotação no diário de Harry naquela noite, funcionário público aposentado com um sério talento em observar o comportamento humano e portador de estranhas manias, como deixar o conforto de seu minúsculo apartamento no subúrbio da cidade para se hospedar em algum hotel durante uma semana ou mais.

Evidentemente, já vira os mais variados tipos de hotéis da cidade, mas nunca algum como aquele, que era afastado do centro urbano, já na saída da metrópole. “Hotel Harmonia” era o que dizia o letreiro luminoso. O lugar estava em silêncio, quando Harry surgiu à frentedo recepcionista, que deu um sorriso de orelha a orelha. Era provavelmente a primeira alma humana que via em meses. Harry soube então que estava sozinho no hotel. Em cima do balcão, uma TV. “Acharam o corpo, mas não a cabeça; fizeram o velório com o corpo decepado, antes que começasse a necrosar.” “Hotel Agonia”, pensou Harry em resposta à notícia do telejornal.

“Hotel Agonia, Hotel Agonia”, sua mente foi gritando até chegar a seu quarto; lá alcançou com a mão trêmula um frasco de calmantes no fundo da mala. Engoliu dois comprimidos com água da torneira. Ficou deitado na cama esperando o placebo fazer efeito. Ficou lá até que a imagem da viúva chorando sobre o corpo decepado do marido não o assustasse mais. “E se colocassem uma foto 3x4 do defunto no lugar da cabeça?”. Harry julgou uma boa idéia.

Levantou cambaleando da cama, o remédio o deixara mais tonto do que o de costume. Da sacada do seu quarto pode avistar os montes que se erguiam a sua frente. No meio de todo aquele verde, os armazéns da cooperativa. “Natureza e progresso podem coexistir, há espaço o bastante para todos no universo, esse grande monte de nada, e talvez o nada seja maior que todo o resto.”

Voltou para dentro. Deitou na cama pela segunda vez. O lustre no teto girava em sentido horário. Harry sentia ânsia de vômito.

Abriu a gaveta da cômoda, lá dentro uma bíblia repousava. Colocou o frasco de placebo em cima do livro sagrado. “Vício e Religião. Dois pastores irmãos que conduzem rebanhos cegos”. Harry já se sentia sóbrio.

Dormiu e acordou diversas vezes. 3:34 da madrugada foi quando julgou que uma caminhada pela vizinhança não lhe faria mal.

Caminhou pela noite até encontrar, sentado num ponto de ônibus, um homem de uns cinqüenta anos, fumando um cigarro e encarando um outdoor que dizia em letras garrafais: “Aproveite um grande hábito.” Harry se sentou ao seu lado e ficou em silêncio, encarando o mesmo outdoor.

O homem começou a falar: “Hoje as pessoas vivem pobres e morrem ricas, quando deveria ser o contrário, viverem ricas e morrerem pobres. Trabalham a vida inteira para morrerem com algum luxo. Pra que isso? Não há honra nenhuma na morte, nem um motivo para se alegrar ou celebrar, a morte é tão ordinária que acontece com todos, não há nada de especial nisso. Estão deixando de aproveitar a vida para se preocuparem com a morte...”

O homem continuou falando, Harry se levantou e pegou o caminho de volta para o hotel.

“Sabe o que me deixa preocupado? Esses jovens mansos de hoje em dia, que têm uma facilidade imensa em escolher o que querem para seu próprio futuro, esses jovens seguros de si, responsáveis, dedicados, felizes, satisfeitos. Não acho que essas sejam qualidades, pelo menos não nessa idade. Acho mais favorável sermos inquietos, insatisfeitos, cheios de tédio e preocupações, e por que não dizer tristes? Enfim, acho melhor criarmos nossos demônios pessoais o quanto antes, dessa maneira os matamos mais cedo e levamos a experiência vivida com esses demônios pala fase adulta.”

Aquela foi a nova última anotação no diário de Harry naquela madrugada, quando seu relógio marcava 5:14 da manhã.


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