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Duas Marianas, dois destinos – sobre dois contos de Machado

Mariana e Mariana. Há um outro escritor, do calibre do maior de todos entre nós – e portanto no exterior – que tenha escrito dois contos com o mesmo título? Um nome de mulher. Que fixação tinha Machado em Marianas! Ou foi só uma única Mariana, com vinte anos de diferença uma da outra?

Não sou de ler tratados sobre literatura. A literatura eu a consumo, não a estudo. Por isso não sei nada sobre Mariana de 1871 e a Mariana de 1891 além do que os dois contos me dizem por eles mesmos. Escrevo aqui, portanto, na mais estúpida das ignorâncias sobre qualquer sociologia que tenha sido feita a respeito das Marianas de Machado. Mas essa ignorância não significa que nada sei. O que os contos contam já são por demais, ao menos para alguém como eu que sou um perscrutador de mulheres.

Mariana é nome de minha neta. E não sei de fato por qual razão minha filha a nomeou desse modo. Uma filha de uma prima querida chama-se Mariana. Marianas me interessam! Eis aí algo em comum que tenho com Machado, e isso já me faz orgulhoso! Minha Mariana é uma e a Mariana de minha prima, Malu, é outra. Marianas de Machado, ouso dizer, nunca foram reais. Foram personagens mesmo. Duas décadas de distância um conto de outro. Uma Mariana mulata, comendo a poeira da escravidão. Outra, a Mariana Branca, nas fraldas da República. Uma só Mariana, em dialética. Com a primeira face, Machado traz a Mariana enquanto símbolo da devoção, com a segunda, símbolo do desprezo. Mas, poderíamos inverter!

Machado é o escritor mais negro que conheço. Ninguém como Machado é de fazer a apologia de sua raça de maneira mais fecunda e elegante que ele. Todos que vieram depois e se esfalfaram para escrever contos ou romances que pudessem dar orgulho ao povo preto, ainda que tenham feito muito, jamais alcançaram a tamanha fecundidade genial de Machado. O contraste entre a Mariana mulata e a Mariana branca diz bem disso. A Mariana mulata comete suicídio por amor, em silêncio. A Mariana branca, em silêncio igual, mostra como que ao invés de se matar por amor, pode-se matar o amor. Nos dois casos, há a morte diante de convenções sociais. O cupido é vitimado em ambos, por conta de ser um daimon travesso.

A Mariana mulata, escrava, não poderia se casar com Coutinho. Nem se ver correspondida no amor. Então, tem no suicídio sua salvação e, na esperança dela, também a salvação do próprio amado, que iria seguir por um casamento feliz, segundo o que poderia ter pensado. Isso, é claro, não se realizou. A noiva de Coutinho não mais o quis. Ela passou a desconfiar que Coutinho pudesse de fato ter amado Mariana.

A Mariana branca, senhora de posses médias, fez juras de amor a Evaristo. E assim agiu estando casada com Xavier! O amor deles, no entanto, viu um muro se interpor, e isso ocorreu por conta da mãe de moça. Vendo-se impedida de concretizar o amor verdadeiro, que era por Evaristo, Mariana também tentou contra a sua própria vida. O veneno ingerido, para a sorte da família, não conseguiu cumprir seu trabalho. Quando anos mais tarde Evaristo voltou, ela não lhe dispensou nenhum carinho especial, nenhuma atenção, estava então aos pés do marido moribundo – o mesmo Xavier.

Nesses dois contos, Machado termina como lhe é de praxe, deixando o leitor no leito da ironia. Ah! O nosso Schopenhauer brasileiro, melhor que o original na sua metafísica do mal.

No conto de 1871, ao terminar de relatar uma sua história antiga para os amigos, muito tempo, Coutinho e os ouvintes vão olhar mulheres nas ruas, e todo o peso de seu drama se desfaz rapidamente entre os amigos. É preciso não ter nenhum conhecimento de causa para não perceber que Machado quer deixar o leitor sob a ideia de que a morte de Mariana era antes de tudo o que sempre foi: o desaparecimento de uma mulatinha. Ou seja, o fim de uma escrava. O leitor fica impactado com a história que Coutinho conta. Mas o próprio Coutinho e seus amigos nem tanto. Eis as linhas finais:  “Coutinho concluiu assim a sua narração, que foi ouvida com tristeza por todos nós. Mas daí a pouco saíamos pela Rua do Ouvidor fora, examinando os pés das damas que desciam dos carros, e fazendo a esse respeito mil reflexões mais ou menos engraçadas e oportunas. Duas horas de conversa tinha-nos restituído a mocidade.” Pois é, as duas horas de conversa nada haviam significado senão um modo de restituir os homens aos aposentos da energia da juventude.

No conto de 1891, Evaristo ainda cruza com Mariana mais uma vez na rua, com ela já sob o luto. Ela não se dirige a ele. De novo o desprezo. O conto termina com alusão ao teatro. Evaristo corre para ver uma peça de teatro de um amigo e descobre que, no Rio de Janeiro, a peça havia caído, não tivera o público esperado. Machado fecha o conto: “— Cousas de teatro, disse Evaristo ao autor, para consolá-lo. Há peças que caem. Há outras que ficam no repertório.” Como amor de Mariana, cujo destino não fora o do repertório.

Mariana mulata fora sincera no amor. Mariana branca fora sincera no amor e, depois, no desamor. Nenhuma das duas pode ser feliz, pois foram engolidas por instituições sociais. A primeira, tragada pelas diferenças impostas pela escravidão; a segunda, vitimada pela força de algo como o casamento, a escravidão da mulher branca. Mas entre a escravidão da mulher branca e a escravidão da mulher negra, quem perdeu a vida foi só a primeira. Mal ou bem, Mariana branca seguiu sua vida até o seu fim natural. Você acha pouco?

Paulo Ghiraldelli Jr, 63, filósofo. 22/11/2020



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