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O dia em que o papa se aliou aos muçulmanos para combater um rei católico fanático

(Fonte: BLEYE, Pedro Aguado. Manual de Historia de España, Tomo II: Reyes católicos – Casa de Austria (1474 – 1700). 7ª ed. Madrid: ESPASA-CALPE, S. A., 1954)

Se você for um romanista moderno, talvez pense que o papado sempre foi aquela instituição espiritual, santa e piedosa, que não se envolvia em assuntos terrenos senão no que dizia respeito ao Reino dos céus; afinal de contas, o Papa diz ser o representante máximo daquele que disse que seu Reino não era deste mundo (Jo 18:36). Por outro lado, se você for um romanista tradicionalista (ou tridentino), já terá descartado essa balela de “Reino dos céus” e aceitado que o papa também tinha amplos poderes temporais e que podia mobilizar exércitos para seus próprios fins; todavia, estará propenso a aceitar que estes fins são apenas os mais nobres para o bem da religião (a sua, é claro), como por exemplo nas Cruzadas.

Eu tenho uma má notícia: os dois estão redondamente enganados. Ou, como diria o prof. Leandro Quadros, “mais por fora que arco de barril”.

Sim, o papa atuava como um soberano temporal como qualquer outro soberano da época (com o diferencial de ter uma influência e poderio muito superior), mas ele nem sempre usava esse poder para o bem – e nem mesmo para o conceito católico de “bem”, o qual já é bastante abjeto. Um caso que ilustra isso com brilhantismo é o da guerra do papa aliado à França contra o rei ultracatólico Felipe II, da Espanha. A bibliografia utilizada neste artigo será o “Manual de Historia de España”, do Dr. Pedro Aguado Bleye (1884-1953), historiador espanhol que foi membro Real Academiada Espanha. O livro é simplesmente gigante, um dos maiores que já vi na vida, muito maior que a Bíblia, com milhares de páginas em letras pequenas e é apenas um dos volumes (o “Tomo II”).

Abaixo segue uma foto que tirei de duas páginas do livro, e a seguir a minha tradução dos trechos mais importantes para entendermos esse evento.


Primeiramente vamos à página 559 do livro, onde o autor mostra o contexto da situação política da época que levou a estes confrontos:

“O matrimônio de Filipe II com a rainha da Inglaterra representava uma grande ameaça para a França. Se desse matrimônio nascesse um filho, seria herdeiro, conforme as capitulações matrimoniais, da Inglaterra e de Flandres, e Londres e Antuérpia estariam em uma só mão. Henrique II não poderia permanecer impassível ante semelhante perigo. E outra vez o papa, o rei da França e o sultão da Turquia se uniram contra o novo rei da Espanha, quem, como seu pai, não havia de ter outra política que a de opor-se em todas as partes aos avanços da heresia e a romper ou conter a frente muçulmana, representada pelos turcos (p. 559)

Nessa época os dois países católicos (Espanha e França) eram inimigos ferrenhos, e a Inglaterra sob Maria Tudor havia voltado a ser católica romana em submissão ao papa, depois do período de catolicismo nacional de Henrique VIII (discorri sobre isso neste artigo). O casamento entre o rei da França e a rainha da Inglaterra significava a união destas duas potências europeias, e o herdeiro deste matrimônio se tornaria extremamente poderoso, dominando amplas regiões como um autêntico imperador (nesta época, os Países Baixos estavam sujeitos à Espanha). E para piorar ainda mais as coisas, o imperador do Sacro Império Romano-Germânico (a atual Alemanha) era o irmão de Filipe II (Fernando I).

Em termos simples, o rei da França precisava tomar alguma atitude drástica e emergencial para evitar que isso fosse pra frente, ou então a França seria fatalmente liquidada na guerra. Ele precisava de aliados com urgência para derrotar Filipe II e seu enorme império. E ele não demorou para arranjar um: o papa Paulo IV. “O que o papa estava fazendo metido em política?”, você poderia pensar. Uma causa nobre, uma “guerra justa”, uma questão moral? Nada disso. Como conta Bleye, suas motivações eram puramente políticas e nacionalistas:

“O ancião papa Paulo IV, cuja eleição não pôde impedir Carlos V, ainda que tenha tentado, pertencia a uma antiga família napolitana, a de Caraffa, angevina de tradição, e, portanto, inimiga da dominação espanhola na Itália. Para satisfazer esse arraigado rancor e buscando, adicionalmente, o meio de sua família, negociou uma aliança com o rei da França, Henrique II, e consequentemente, com o sultão da Turquia, que era aliado da França. O rei da França tomava sob sua proteção a casa de Caraffa e se comprometia a enviar à Itália um exército que, unido a outro equivalente que o papa levantaria na Itália, faria a guerra em Toscana e acometeria a conquista do reino de Nápoles. Quando chegaram a Filipe II estas notícias e a ameaça de excomunhão e privação do reino, que Paulo IV combinou imprudentemente ante ao embaixador veneziano, consultou aos teólogos da Universidade de Lovaina se era lícito defender seus territórios contra o papa, como contra qualquer príncipe temporal, e se podia romper as hostilidades contra ele quando tivesse motivos suficientes para temer seu ataque. Os teólogos de Lovaina dissiparam os temores de Filipe II, e o dominicano Melchor Cano, grande teólogo espanhol, deu também resposta ao rei acerca do subsídio eclesiástico, aclarando os aspectos jurídicos e religiosos desta contribuição, e confirmou com maior energia a opinião dos teólogos de Lovaina. ‘Pelo bem da Igreja – dizia Cano – o rei deveria corrigir os abusos daquela pela força’. Quando Filipe leu esta carta, parecia decidido a fazer a guerra contra o papa, antes de se preparar melhor e se fortalecer mais. Na Espanha a opinião estava dividida, pois enquanto alguns davam a razão ao rei e a seu pai, a não poucos repugnava que se fizesse guerra ao pontífice” (p. 560)

Então o papa se mete no meio da guerra por razões de ambição puramente política, e pior: se alia aos turcos (muçulmanos), que por tantos séculos já atacavam a Cristandade ocidental e que causaram a ruína de Constantinopla! E o que é mais impressionante: tentando meter religião no meio de forma covarde e sorrateira, o papa ameaçava excomungar o rei católico Filipe II, não por este ter cometido algum pecado ou falta grave, mas simplesmente por estar no lado contrário da guerra!

As alianças estavam feitas: de um lado, a Espanha com o apoio de Inglaterra, Países Baixos e do Sacro-Império; do outro, a França com o apoio dos turcos muçulmanos e do papa (por extensão, dos Estados Pontíficos). A maior parte da Europa estava envolvida de maneira direta ou indireta. Bleye nos conta o tamanho do exército que esta segunda aliança mobilizou na ocasião:

“O exército francês se compunha, pelo menos, de 10.000 soldados de infantaria suíços e franceses, 400 homens de armas e 1.200 cavalos ligeiros. O papa devia levantar na Itália 10.000 italianos e aprontar artilharia, munições e mantimentos, além de depositar em Veneza 150.000 ducados, aos que Henrique II acrescentaria 350.000. O que se conquistasse em Toscana, Nápoles e Sicília seria para um dos filhos do rei da França, e para outro o ducado de Milão. Os Estados pontíficos se alargariam até o rio Pescara, no Adriático, e o Garellano no Tirreno. Ao conde de Montorio e a Dom Antonio Caraffa, sobrinho e irmão, respectivamente, do papa, se lhes concederam Estados de 25.000 ducados de renda anual” (p. 560)

Filipe II se despede de sua esposa Maria (aquela, a Sanguinária) na qualidade de chefe supremo do exército e vai a Bruxelas. A guerra começa. A mais sangrenta batalha foi a de San Quintín, travada em 10 de agosto de 1557, na qual o exército espanhol alcançou uma de suas mais notáveis vitórias, à custa de muitas poucas baixas. Filipe II tenta em vão persuadir o papa a se separar da guerra enviando mensagem aos venezianos, mas consegue outra grande vitória na batalha de 13 de julho de 1558, quando o exército do rei francês Henrique II perdeu a artilharia e teve milhares de mortos e prisioneiros. Nem por isso a guerra acabou, mas uma coisa obrigou os dois exércitos católicos a cessarem fogo. Bleye nos conta o que foi:

“Os dois exércitos desejavam e temiam por sua vez um encontro decisivo. Os dois reis, o da Espanha e o da França, estavam preocupados com o mesmo problema: o crescimento do calvinismo na França e em Flandres, e necessitavam da paz para atender a um mal tão grave (...) Assim, se firmou entre Espanha e França a paz de Cateau-Cambrésis (3 de abril de 1559), a ‘paz católica’, muito vantajosa, na verdade, a Henrique (...) A paz de Cateau-Cambrésis pôs fim ao período preliminar do reinado de Filipe II, período que não é outra coisa que o epílogo do reinado de Carlos V. Essa paz encerra a larga luta entre Espanha e França, iniciada por Carlos V e Francisco I em 1521. Com ela, em suma, conclui-se uma política europeia e se inicia outra, a da Contra-Reforma, ou seja, o predomínio espanhol na Europa” (p. 565-566)

É exatamente isso o que você leu: eles pararam de se matar entre si porque tinham uma ambição maior – matar os protestantes. E não porque os protestantes estivessem causando devastação na França (o que seria vantajoso ao rei espanhol politicamente falando), mas porque o fanatismo católico antiprotestante estava acima de suas rivalidades políticas pessoais. Depois disso ocorre a famosa Noite de S. Bartolomeu, com a carnificina de dezenas de milhares de protestantes franceses com a comemoração e celebração do papa e de seus súditos. O próprio Bleye fala sobre essa festa do papa quando soube do tremendo massacre:

“O rei ordenou, e aquela noite, quando os sinos da igreja de Saint-Germain deram o sinal combinado, começou a matança. A casa de Coligny foi assaltada. O velho almirante, que estava ferido, foi barbaramente assassinado, e seu cadáver jogado por uma janela. Os calvinistas, surpreendidos em suas camas, homens, mulheres ou crianças, morreram a golpe de faca, espada ou a tiros (...). O papa Gregório XIII celebrou esta matança, que valia para ele mais do que cinquenta batalhas de Lepanto; mandou cunhar uma moeda comemorativa e ordenou a Vasari que pintasse as trágicas cenas em Paris. Em Bruxelas e no Escorial se festejou mais moderadamente” (p. 617)

A “unidade” católica é um mito que nunca existiu. Os reis católicos e o papado (cujos papas não deixavam de atuar como autênticos reis temporais) se odiavam mutuamente e se matavam entre si, e a única coisa que os fazia parar de se matar era quando precisavam se unir para matar os “hereges” e salvar aquilo que as duas partes fanáticas consideravam o mais importante: a fé católica.

Nessa terra de bárbaros, pouco importava se o outro lado também era católico. O papa era católico, o rei da França também, o rei da Espanha mais ainda. Um dos maiores capítulos do livro de Bleye é um chamado “A luta de Filipe II contra o protestantismo”. Esse rei era um antiprotestante tão fanático que se eu fosse contar aqui todas as histórias ficaria o mês inteiro escrevendo. De fato, ele não perdia em nada para Carlos V, seu pai e o grande inimigo de Lutero. Bleye escreve:

“Carlos V e Filipe II tinham a mesma política religiosa: defender o catolicismo. Consequente com ela, Filipe ajudou a sua esposa, a rainha Maria Tudor, a restaurar o catolicismo na Inglaterra; fez com a França a ‘paz católica’, arrancou violentamente na Espanha e na Itália os frutos do protestantismo e sustentou em seus Estados de Flandres largas guerras, cujo resultado foi conservar o catolicismo no sul” (p. 572)

E é isso o que mais choca: os muçulmanos eram "inimigos", mas quando o que estava em jogo eram as ambições políticas do papa, ele não se importava em se aliar a eles e a um rei católico a fim de massacrar outro rei católico; quando, porém, o assunto era exterminar os protestantes, esse último inimigo também se transformava magicamente em “amigo” para lograr esse objetivo maior. Tudo girava em torno de ambições políticas doentias e fanatismo católico antiprotestante, onde papas com sede de sangue (e não o de Cristo) faziam o diabo para conseguir e manter o que queriam: poder. A pretensa “espiritualidade”, a “piedade” e a “caridade” que os apologistas católicos julgam que o papado possuía não passa de uma fantasia anti-histórica e fraudulenta, e o “Santo Padre” não era em nada melhor que os reis tiranos e megalomaníacos que o seguiam em sua época.

O Reino de Cristo podia não ser deste mundo, mas o dos papas sim. E para alcançar este propósito foram cometidos os maiores assassinatos, expulsões, confiscos, torturas, inquéritos, perseguições e massacres sem fim, fosse na Europa, na Ásia ou no Novo Mundo. O local, o modus operandi, as circunstâncias, o inimigo... nada importava. Ele podia ser os judeus (Inquisição), os muçulmanos (Cruzadas), os albigenses (Cruzada Albigense), os ortodoxos (Saque de Constantinopla), os protestantes (Noite de S. Bartolomeu), os índios (massacrados pelos espanhois às dezenas de milhões), os valdenses e até os próprios católicos com intermináveis guerras entre si onde o papa se metia no meio contra outros reis católicos. Em suma, o "inimigo" era o mundo inteiro, que tinha que se dobrar à autoridade papal querendo ou não, gostando ou não. Era um verdadeiro vale-tudo para manter e aumentar o poder temporal da Igreja.

E depois de tudo isso, ainda temos que aturar em pleno século XXI indivíduos que não apenas defendem todas estas atrocidades, mas ainda chamam os papas de santos infalíveis e afirmam que essa mesma Igreja é a única verdadeira, fora da qual não há salvação, guiada sobrenaturalmente pelo Espírito Santo sob a intercessão constante e poderosa de Maria e de todos os santos no Céu – e que por mera fatalidade, essa é também a igreja mais assassina que já existiu. Se existe um nome para a mediocridade, este é apologética católica; e para a decadência humana, apologistas católicos. 

Paz a todos vocês que estão em Cristo.

Por Cristo e por Seu Reino,
Lucas Banzoli (www.facebook.com/lucasbanzoli1)


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