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Não é o canto que levanta o sol

Eu comecei a usar óculos muito cedo. Acho que não tinha mais do que quatro anos quando minha mãe notou que eu assistia Chaves de muito perto da televisão. E lá foi ela me arrastar para o oftalmologista e dar início aos longos anos de filas de espera e adivinhação de letrinhas.
 
E como se não bastasse o olhar adolescente ser capaz de amplificar toda e qualquer insegurança nossa, o meu olhar ainda era de fundo de garrafa. Óculos constantemente tortos e marcados pelo desentendimento entre nós dois.
 
Mas mesmo assim, todos os dias, por anos, eu os usei e lembrei deles em todas as manhãs.
 
Por mais feios que fossem os óculos, eu não saia sem eles. Como é que eu ia viver em um mundo que eu não via, não é mesmo?
 
Hoje, com 28 anos, eu continuo procurando pelos meus óculos. E por todos os outros. Me parece que o mundo parou de ver. Será que eram tão feias as lentes que optaram pela cegueira?
 
Eu quero de volta os exames em que meu maior erro era o trocar das letras do alfabeto. Ninguém se suicidava porque eu chamava o P de B. Nenhuma criança ficava sem pai porque eu não conseguia focar no pontinho vermelho da fazendinha. Não haviam prisões ilegais. Amantes não desistiam do seu amor. Pessoas não abriam mão da sua felicidade. A maior repressão que eu sofria era uma lente um pouco mais grossa.
 
Nesse mundo cheio de certezas minha melhor hipótese é que temos algum problema com o grau das lentes.
 
A armação não é vermelha. A armação não é verde ou amarela. É armada a imagem que passa no projetor. Chego a pensar que armada já é também até a cegueira.
 
Um fingimento para não perder os privilégios que apenas o não ver pode tornar aceitável. Sabe quando a criança se estatela no chão e não chora até que perceba o olhar de um adulto? Parece que esses adultos aprenderam o truque e agora não as deixam notar que foram vistas. “Tudo bem que ele me deixe no chão, ele não me viu.”, pensam as pequenas.
 
“Tudo bem minha família não reconhecer a pessoa que eu amo, eles são de outra geração.”
“Tudo Bem Ele passar a mão no meu seio, ele achou que eu queria, minha saia era curta demais.”
“Tudo bem ele dormir com a chave no bolso, ele está preocupado com a minha segurança.”
“Tudo bem esse roxo, me acertou sem querer.”
“Tudo bem que ele tenha desviado dinheiro, ele mandou construir aquela estrada.”
“Tudo bem ele ganhar mais para fazer o mesmo que eu, o mercado é assim.”
“Tudo bem ele me chamar de macaco, eu aprendi a lidar.”
 
 
Pensam os pequenos.
 
 
Não, não está tudo bem.
 
Não dá mais para acreditar que não estão vendo. Não dá pra achar que não me viram, que não nos viram. Há pobreza em cada farol. Jogaram no lixo o direito de escolha de milhões de pessoas. Aos poucos estão jogando no lixo também todos os outros direitos que não pertencem aos homens brancos da classe empresária. Não há exame que vá me convencer das letras que esses homens me dizem ver. E também já não há nada que me convença de que as pessoas estão tentando encontrar o par de lentes que lhes permita maior nitidez.
 
Mas nesse mundo onde tanta gente anda cantando de galo, vale lembrar que não é o canto que levanta o sol. Em tempos sombrios, o galo mudo será. Em noite escura, tanto faz o que você vê, todos ficam à mercê de quem detém o controle do interruptor.



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