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Uma nota hegeliana a "Batman: o Cavaleiro das Trevas Ressurge"

 *****************ATENÇÃO: este texto contém spoilers do filme (e também do texto hegeliano, o que não é, de forma alguma, um problema). Se não tiver visto o filme ainda e/ou não quiser estragar a surpresa, não é recomendável lê-lo. *****************

Na tentativa de relacionar a filosofia ao cinema, ainda que minha tentativa seja relativamente falha, por carecer de alguns estudos mais profundos acerca dessa relação, este texto tem como objetivo fazer saltar aos olhos a primeira parte da chamada Dialética do Senhor e do Escravo, conhecida passagem do texto hegeliano Fenomenologia do Espírito (daqui em diante apenas FE) (1), em duas cenas do terceiro filme da trilogia de Christopher Nolan, a saber, a saída de Bruce Wayne do poço onde está preso, e o enfrentamento, ou, melhor dizendo, o duelo, entre o exército de Bane e a polícia de Gotham. Assim, o texto presente é uma grande desculpa para falar de Hegel e de Batman.

No texto da FE, Hegel apresenta o conceito de reconhecimento. Apesar de muitos comentários acerca do texto relacioná-lo em sua essência à política, por causa dos termos empregados, como senhor e escravo, concordamos com a leitura de que o texto não é essencialmente político (2), por uma questão de ordem do próprio texto hegeliano: essa passagem se situa antes da discussão propriamente política, acerca do indivíduo como membro de uma sociedade e de um estado ao longo da história. A passagem ainda é sobre o indivíduo num processo de desenvolvimento da consciência, saindo de um modo de pensar comum em direção a um modo de pensar filosófico. Para isso, é preciso que o indivíduo se reconheça – e seja pelos outros reconhecido – como autoconsciência (ou consciência de si). É nesse contexto que podemos ter uma interpretação mais adequada à passagem da dialética do senhor e do escravo, apesar de podermos relacioná-la, mais tarde, ao longo da FE, com a política, uma vez que ela é, no sistema hegeliano, condição para o desenvolvimento de uma (auto)consciência política.

Em resumo, e muito grosseiramente, a “primeira parte” dialética do senhor e do escravo apresenta o conceito de reconhecimento da seguinte maneira: duas consciências, ou seja, dois indivíduos, que até então se sabiam sujeitos em relação a outros objetos, os objetos de conhecimento, deparam-se em um dado momento um com o outro. Ambos querem permanecer na posição de sujeito, na relação sujeito-objeto; no entanto, não podem: a satisfação do querer de uma colide com a satisfação do querer de outra, ou seja, se uma o realiza, a outra não pode realizá-lo. Há, então, o momento da “luta de vida e morte”: as consciências se enfrentam em um duelo, colocando suas vidas em risco, a fim de vencer o jogo e serem reconhecidas pelo outro como sujeitos. Há um enfrentamento real, mas não somente de uma consciência com a outra: ambos os indivíduos enfrentam a morte, enfrentam o medo da morte. O vencedor desse duelo é aquele que não apenas derrota o outro, mas que vence o medo da morte, que se liberta inclusive de suas necessidades biológicas; o que perde, perde por não se libertar dessas necessidades, ou seja, perde por temer perder a vida. O primeiro é designado por senhor (um senhor dos seus medos, aquele que os domina), e o segundo, por escravo (em contrapartida ao senhor, é aquele que não consegue se libertar de seus medos, não domina sua vontade).

Em último caso, essa luta não pode terminar em morte, é sempre uma luta apenas de vida (3), pois a consciência vencedora precisa do reconhecimento da outra como; isso também significa “vencer” essa luta. Se houver de fato aniquilação da outra consciência, o reconhecimento não se dá. No entanto, o ponto crucial desse texto, e o que nós queremos chamar atenção, é que os indivíduos colocam em risco a sua própria vida, superando (ou não) o medo da morte: o vencedor é aquele que não teme a morte. Todavia, é preciso frisar que esse não temer a morte não é, em sentido algum, que o indivíduo precise ser um temerário, em sentido aristotélico: um indivíduo que arrisca a vida de maneira imprudente. É preciso que ele seja um corajoso, que reconheça o risco e mesmo assim o enfrente, prudentemente (4).

Agora, voltando ao Batman: no filme, Batman é entregue ao Bane pela Mulher Gato, derrotado por ele, que quebra sua coluna e o joga na prisão por onde ele mesmo passou, um poço no qual nenhum prisioneiro jamais escapou, exceto uma criança (a qual, até quase o desfecho, somos levados a acreditar que é o próprio Bane). Durante a permanência de Bruce nessa prisão, Bane protagoniza uma tentativa de ato revolucionário em Gotham, prendendo quase toda a polícia nos esgotos da cidade e tentando, a sua maneira, dar o poder ao povo, e aos que foram condenados sob a lei anti-crime idealizada por Harvey Dent. Bruce, por outro lado, tenta se fortalecer para retornar à Gotham e derrotar Bane; com o auxílio do médico da prisão, que “conserta” sua coluna, e lhe fala acerca da criança que escapou do poço: a única que tentou sair sem as cordas auxiliares, a única que conseguiu a liberdade (que viemos a saber, no final do filme, ser Taila Al Ghul). O velho da cela ao lado chama a atenção de Bruce justamente para isso: a criança enfrentou o medo da morte e se libertou; ele deveria fazer o mesmo. Bruce, que já tinha tentado algumas vezes sair do poço com o auxílio das cordas, sem sucesso, resolve tentar sem elas. É aí que ele finalmente sai da prisão: quando ele enfrenta o medo da morte.

Aqui temos a primeira cena para a qual gostaríamos de chamar atenção em relação ao texto hegeliano: é preciso pôr em jogo a própria vida para ser reconhecido. O herói só retorna depois de por sua vida em risco, reconhecendo o medo, sentindo-o e superando-o. Esse retorno é literal: Batman volta à cidade de Gotham e à posição de herói; até então, ele ainda estava desacreditado pela população, ainda era visto como vilão, pois tinha assumido a culpa pela morte de Harvey Dent, o que nos é mostrado no segundo filme. O herói recomeça seu processo de reconhecimento pela população como herói a partir do momento em que ele mesmo reconhece o medo da morte, arrisca a vida e se liberta. No filme, o velho da cela ao lado diz pra ele, momentos antes disso, que o problema dele era justamente não ter medo da morte, o medo nos move. Bruce não se libertava da prisão – nem conseguiria derrotar Bane – porque não sentia esse medo. Na segurança das cordas, ele tentava escapar da prisão: sabia que se não conseguisse, as cordas o segurariam; mas era preciso mais, era preciso sentir que, se não conseguisse, ele morreria: era preciso sentir o medo de morrer, para vencê-lo. É isso o que ele faz, e por isso ele pode ser chamado aqui de senhor, o senhor que dominou o medo e pode voltar para a batalha com Bane.

Certamente, neste momento exato do filme, a dialética do senhor e do escravo não está completa; ela só se completaria no momento em que Batman de fato derrota Bane. E é interessante notar que ele o faz sem matá-lo: é preciso que Bane o reconheça como o senhor, e que aceite a sua posição de escravo. No entanto, a Mulher Gato não pensa exatamente assim, e põe um fim à vida de Bane, mas é preciso frisar que não é o Batman que o faz – uma característica, inclusive, do herói: não há mortes em suas batalhas; o inimigo precisa sempre reconhecer a derrota, reconhecer, nos termos do texto hegeliano, que Batman é o senhor e que ele mesmo é o escravo.

Num outro momento do filme, a polícia de Gotham, que caiu na armadilha de Bane e ficou presa nos esgotos da cidade, é libertada pelo detetive Blake, com a ajuda de Batman, que retornou da prisão. Essa polícia, que até então perseguiu Batman por crer que ele era o verdadeiro vilão, e não Bane, e que não reagiu aos ataques do vilão a tempo, percebe agora que é preciso fazer algo, é preciso retomar seu lugar na cidade. É nesse momento que temos o enfrentamento entre o exército de Bane e o exército policial – uma das cenas épicas do filme, relembrando campos de batalhas antigas e medievais, nas quais um grande número de soldados se enfrentava corpo a corpo. Esse é mais um momento onde podemos fazer uma relação do filme com o texto de Hegel: o exército de Bane é derrotado, tornando-se escravo; já a polícia é aquela que arrisca a sua vida reconhecendo a morte, com medo, mas enfrentando-o – a vencedora, portanto, o senhor da relação. A polícia retoma a ordem na cidade através desse enfrentamento; o exército de Bane não é totalmente aniquilado, o que força o reconhecimento da polícia como senhor e deles próprios, do exército de Bane, como escravos.

É interessante notar que nesse momento de enfrentamento entre os dois exércitos, de um lado temos um exército “anárquico”, sem líder – apesar de sabermos que é o exército do Bane, ele não chega a ser necessariamente um comandante; os membros desse exército são livres para agir do modo que eles bem entenderem e, de certa forma, a nosso ver, não importa muito o que eles façam, pois tem uma bomba marcada para explodir e isso aconteceria independente do modo como eles agissem – e, de outro lado, temos um exército sob o comando de Peter Foley, que assume o comando da polícia enquanto Gordon está no hospital. Ele vai à frente do exército nesta batalha, como os generais das batalhas épicas faziam. Ainda seria preciso, talvez, uma análise mais profunda dessa relação – que, a nosso ver, é essencialmente política – o que não pretendemos aqui; mas acreditamos que não é por acaso que essa relação está no filme e é importante destaca-la, já que tocamos no assunto.

Em suma, e para não nos prolongarmos mais, assim como no texto de Hegel o senhor é aquele que tem presente o medo da morte, mas o enfrenta; ele põe a sua vida em risco, sabendo que pode morrer, mas o faz, a fim de ser reconhecido como consciência pelo outro; em Batman: O Cavaleiro das Trevas Ressurge, podemos encontrar o herói tornando-se senhor, enfrentando e aprendendo com o medo da morte, assim como a polícia, que retoma seu lugar quando percebe que é preciso enfrentar a morte. Ainda assim, é preciso ressaltar que a dialética do senhor e do escravo não termina aí, há uma “segunda parte”: depois desse momento de reconhecimento das consciências como senhor e escravo, o escravo precisa trabalhar para o senhor, e esse não faz mais nada. O escravo acaba aprendendo que o senhor depende dele, que sem o seu trabalho, o senhor não é nada; além disso, o escravo, através do trabalho, aprende também a dominar as suas próprias vontades, pois o fruto de seu trabalho não é dele, mas do senhor. Há uma espécie de inversão de papéis, de uma segunda chance para o escravo, mas dessa segunda parte, por assim dizer, da passagem hegeliana é preciso outro estudo, o que não faremos aqui.



Notas:
(1)               HEGEL, G. W. F. Fenomenologia do Espírito. [trad. MENESES, Paulo] Petrópolis, Vozes, Editora Universitária São Francisco, 2005.
(2)               Ver, por exemplo: PERTILLE, J. P. “Dialética e reconhecimento: Consciência e Consciência-de-si.” In: MIRANDA, N., FRANCISCHELLI, L. Cruzamentos: psicanálise, filosofia, política e ética. Porto Alegre, Criação Humana, 2000. p. 67-81.
(3)                LIMA, C. R. C. “A dialética do senhor e do escravo e a Ideia de revolução”. In: BOMBASSARO, L. C. Ética e trabalho: cinco estudos. Caxias do Sul, De Zorzi Editores, Pyr Edições, 1989. p. 11-30.
(4)               Para mais detalhes acerca da distinção aristotélica entre o corajoso e o temerário, ver: Ética a Nicômaco (ou Nicomaquéia), do Aristóteles, Livros II e III.


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