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As Olimpíadas vistas através de uma cozinha especial

O título pode parecer tosco, e até Mesmo, incompreensível, sem lógica. Mas é isso mesmo, e já esclareço!

Os Jogos Olímpicos de 2016 no Rio de Janeiro foram os primeiros a serem disputados na América do Sul; isso todos já devem saber. Sabem também que, a despeito de muita desconfiança, os resultados com relação a público, organização e grandiosidade ultrapassaram as expectativas, e muitos “viraram a casaca” durante o andar dos jogos.

[Imagem pública]


Sinceramente, eu era um desses céticos, e com certa relutância, aceitei um convite para integrar um time que iria trabalhar em uma das venues, que é como são chamados os locais destinados às competições.

Como tradutor técnico de textos escritos do Inglês para o Português, entendi que talvez esse fosse um bom desafio, notadamente em tempos tão difíceis como os que estamos vivendo. Foi com certa relutância (até mesmo por jamais ter trabalhado nesta função) que aceitei a incumbência de ser o atendente bilíngue em Deodoro, zona oeste da cidade do Rio de Janeiro. Iria trabalhar junto a uma Cozinha especialmente montada para atender ao pessoal de mídia da empresa estrangeira encarregada pela transmissão internacional dos Jogos Olímpicos.

Ou seja, estaria trabalhando onde técnicos, dos mais diversos campos, estariam presentes para, não só transmitirem com exatidão e qualidade os Jogos, como também para trabalharem nos bastidores, incumbidos de fazer funcionar a verdadeira parafernália de fios, câmeras, equipamentos, computadores.

Uma cozinha foi montada a fim de levar adiante a incumbência de produzir e servir alimentação de ótima qualidade a estrangeiros com os mais diversos gostos culinários. Um enorme desafio, haja vista que estes estrangeiros vinham de áreas como Estados Unidos, Inglaterra, Alemanha, Itália, etc, locais com cultura culinária tão diferente da nossa quanto o azul é diferente do amarelo.

Eram doze pessoas, desde chefsde cozinha de prestígio, até auxiliares dos mais diversos, além de uma profissional de Nutrição, que tinha a incumbência nada fácil de supervisionar a feitura dos alimentos, conferir qualidades e administrar outros pormenores pertinentes a uma cozinha gourmet.
Tínhamos a árdua tarefa de não deixar a peteca cair e servir alimento de altíssimo nível; “padrão”, como dizia nossa nutricionista. Também fazendo parte desse time, a empresa responsável pela transmissão, a qual seria servida por nós, contratou um chefinternacional para trabalhar em conjunto com o pessoal brasileiro. E era justamente aí que entrava a minha contribuição, tentando fazer com que a equipe brasileira conseguisse entender as ideias e orientações do chef britânico, e vice-versa.

Uma cozinha especial [Imagem do autor]

Aprendi inúmeros nomes de condimentos e pratos, e nesse jogo de aprendizado, aprendi também que a amizade não tem preço. Por conta da necessidade de cada um e da conjugação de fatores que reuniram em um só local pessoas tão diferentes, eu diria que, se tudo fosse feito com o propósito de criar vínculos sociais, o resultado não teria sido o mesmo. O fato é que havia um fluxo de sentimentos e companheirismos difícil de acreditar que fosse possível em um ambiente tão estressante como esse, onde os horários das refeições sofriam alterações com certa constância, ao sabor dos períodos das competições programados para o local.

E foi nesse ambiente que vivenciamos de forma totalmente inusitada as notícias sobre o salto espetacular, o recorde estraçalhado, o nado perfeito, os gols decisivos. Nosso QG ficava onde foi montada uma esplêndida corredeira para as competições de canoagem e a pista de BMX (competição com bicicletas incrivelmente ágeis disputada em pista sinuosa e eletrizante, ao som de música alta e alto-falantes que descreviam a todo o momento a queda espetacular, a ultrapassagem impossível, a vitória surpreendente).

- Sim, hoje teremos ossobuco e peito de frango grelhado como pratos principais. “O ciclista colombiano acaba de fazer bonito e levantar sua enorme torcida com manobras de campeão”. - Não nos esqueçamos do saboroso cheesecake de frutas vermelhas que será servido como sobremesa... . “O atleta Pedro da Silva, 23 anos, ficou em 6º na canoagem slalom, e conquistou resultado inédito para o país!”

A cozinha se alvoroçava todos os dias cerca de duas horas antes do horário previsto para que o almoço fosse serviço. “O camarão depois de salteado irá direto para o forno?”- perguntavam os chefsbrasileiros. “Onde está a pimenta para o molho?” – indagava o chefestrangeiro, ao que eu, imediatamente, repassava a indagação ao pessoal responsável pelo estoque de alimentos.

E nessa atmosfera de saudável estresse e trabalho em equipe o tecido da boa convivência foi sendo costurado entre todos do time; a ponto de, bem antes do término do certame, já começarmos a indagar a respeito de como seria ao final dos jogos. Era uma espécie de sofrimento antecipado, por conta de uma separação que, muitos de nós, víamos com lágrimas contidas. Mesmo o chef inglês se apegou à equipe, que não se cansava de indagá-lo a respeito de assuntos que, muitas vezes, extrapolavam o âmbito profissional e adentravam o terreno do particular. “Onde você mora na Inglaterra?”, “Tem carro? Namorada?”. E lá estava eu como uma espécie de elo necessário para que todas essas curiosidades fossem saciadas. “Sabiam que a equipe feminina de vôlei ganhou ontem e segue a caminho da medalha?” – perguntava o ajudante de cozinha.

Em determinado ponto, já com relativa proximidade com o chef inglês, em um raro momento de tranquilidade na cozinha, fui indagado por ele a respeito de meu sentimento com relação aos Jogos Olímpicos sendo realizados em meu país num momento notoriamente tido como difícil, quer no âmbito social, político ou econômico. Não pude deixar de externar minha preocupação com relação aos gastos com os Jogos em momento tão delicado para o país, vivendo, mesmo que por breve momento, em um ambiente próspero, de alta tecnologia, uma ilha de qualidade e prosperidade bem no coração da zona oeste do Rio de Janeiro. Vi em seus olhos o respeito por minhas preocupações e a confiança adquirida, entendendo que, embora eu estivesse obtendo a vantagem do ganho cultural e monetário com aquele trabalho, eu também tinha a visão pragmática de que estava vivendo por um tempo em uma redoma de excelência. Só por um momento...

As últimas medalhas estavam sendo distribuídas e a tristeza ia tomando conta da Cozinha 99 (essa era nossa denominação oficial), com a proximidade do fim deste belo sonho olímpico.
Fiz amizades extraordinárias e mesmo impensáveis em outros períodos de minha vida. Aprendi de forma consistente, in loco, o que é ser companheiro, dividir tristezas e muitas alegrias. Dar boas e saborosas gargalhadas. Mesmo o gelo britânico, na pessoa do nosso chef internacional, foi quebrado através da troca de lembranças e presentes, de abraços, e de promessas de contato. Em um momento de folga para ambos, assisti às semifinais e finais do BMX com o agora amigo inglês, bebendo uma cerveja nem tão gelada, sob o sol brilhante, na área VIP (graças a poderosos crachás que davam direito ao livre trânsito do pessoal técnico), e um ar de missão cumprida... e tristeza.

O que eles estão dizendo?” – me perguntava o chef Tony, à mesa do almoço.  “Dan, vou te levar para trabalhar como barman em meu restaurante na Inglaterra”, viajava meu amigo britânico. “Os Estados Unidos faturam as Olimpíadas com o total de 121 medalhas”.

Foram apenas 20 dias, que deixaram marcas profundas em todos nós. Difícil esquecer as saborosas brincadeiras na cozinha, as danças insinuantes da Brenda, as dicas preciosas que colhi junto aos quatro chefs (Bruno, Didi, Alex e Tony), que muitas vezes me deram informações fantásticas. Como não se lembrar de Mário, sempre zen (para nós, Super Mário, por conta da semelhança com o personagem de videogame), que parecia jamais errar em suas funções no estoque? Do olhar singelo e voz mansa de Gabrielle? “A medalha de ouro no tênis ficou com o britânico Andy Murray, repetindo o feito das Olimpíadas de Londres”.

Como esquecer a competência de Shally, Rose e Helena? O que dizer da preocupação constante da nutricionista Raquel com aquilo que seria servido aos estrangeiros? Como medir a amizade forjada a sangue com Moses?! Existe ironia mais deliciosa que a de José e as suas gargalhadas?


O melhor das Olimpíadas não estava lá fora, mas dentro das paredes da Cozinha 99, medalha de ouro em diversidade, persistência e companheirismo. Diversidade, pois éramos tão diferentes quanto a noite e o dia. Persistência, porque as condições desfavoráveis do país levavam a crer que essa empreitada poderia naufragar no mar de impossibilidades que cada um de nós, inconscientemente, levou para o local de trabalho. E companheirismo, por conta dos resultados extraordinários obtidos pela conjunção de fatores que reuniram, em um só local, pessoas que passaram a se conhecer apenas com a troca de olhares! 


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