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A boca da janela

Durante o exercício de contemplação do nada, o cigarro na escada. Uma voz, vindo de uma janela do muro de apartamentos a frente. Uma voz chorosa a falar pretensiosamente.

Durante o cigarro, repetido, pigarreado. A voz, de Dois Andares Acima, assinalada por uma luz florescente saindo da janela, a falar. “Eu não tenho pai, eu não tenho mãe. Eu não tenho a quem ligar no natal”. O andar da escada como assento, o vento e o céu aberto, e a voz.

“Você não sabe o que eu passei”, “Nós temos que apoiar um ao outro, nós somos seres humanos”, “A gente não tem que ficar julgando um ao outro”. Uma mistura de percepções a tona, alguma identificação, e um asco maior. Uma fala que busca desjulgar, julgando, cobrando, não pedindo, mas exigindo. Um coitado, tirano disfarçado. Um tirano meu em identificação, um ponto tocado, identificado, e aqui trabalhado em texto. Alguma coisa de identificação há aqui. Algo sendo dito, com abas de percepções cruzadas.

A identificação. A voz. Há algo de um eu ali. Seja em qualquer fragmento, na posse do outro, na projeção de culpa, na cobrança, no apontar por ser apontado, e nesse jogo ridículo que persiste até o enfado. Tem coisa que precisa acumular pra gente perceber que não precisa acumular.

Um asco, uma identificação. Umas no um. Os fragmentos, as elaborações e reelaborações.

Uma vontade de gritar, as vezes. De xingar, de cobrar uma percepção. De, antes de ser essa elaboração, cobrar uma percepção do que há dentro. Mas o que há dentro, primeiro, deve sair. Tem que se sentir.

E tem coisas que doem mesmo, e tem que doer, para não mais doer. A dor é necessária, até para ser subvertida. As dores em diferentes lugares, em diferentes situações. As dores por algumas partes, que podem ser subvertidas. Sempre.

Sempre tem o sim, como também tem o não.

Percepções turvas de algo. Processo, processo. Erros, erros, erros. O erro pode não mais existir, e se existiu, é possível o erro. É possível errar. Inclusive, para não mais errar.

Que tipo de eu não aceita a possibilidade do erro?

Fragmentos, formulações, reformulações. A voz. Possivelmente a voz não aceita o erro, inclusive o próprio. Não aceita que não tem o natal, e que alguém que falava com ela ao telefone, não se dá para ela. A voz quer do outro, vampira no timbre de choro. Quer, e chora.

Um asco, uma identificação. Um processo. A voz.

Outros timbres são possíveis. Outras percepções são possíveis. Mudanças são possíveis. Tudo no presente é possível, apenas no presente.

O vento que passa, o manjericão, a menta ao lado. Tudo perto, quase ao lado do degrau da escada que serve de assento. E a voz a dois andares acima. Sobre o choro, que vem da voz, uma lembrança.


Uma vez, tão só, me sentia só, sem nada, sem mim. E, andando, chorei. Nesse tempo, há algum tempo, outra voz, outro timbre, já me sussurrava outras verdades possíveis. E, nessa hora, um vento passou, de súbito e forte. Chorei mais, pois percebi que havia um eu possível, um eu presente, que sentiu o vento, e que chorou.


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